Sexta de crônicas: O Mesmo Araguaia

Não vou tanto ao Araguaia quanto desejaria. Mas daqui uns dias, lá irei eu, a desfrutar da paisagem que aprendi a amar desde os seis anos.

Tinha essa idade quando dois caminhões pararam em nossa porta para pegar os passageiros. Os motoristas eram Tonin e Zebim, e os passageiros, duas famílias: a de meu pai e a de Tio Carlos. Nós, os filhos, nos amontoamos na carroceria, junto com sacos de arroz, feijão, farinha, carne seca, e não tenho a menor ideia do que mais; os adultos e minha irmã Graça, de meses, nas boleias. Partimos na aventura que se tornaria inesquecível, imagino, para todos nós: conheceríamos o Araguaia. Que expectativa, que maravilha, que tremenda animação!

Muitos detalhes daquela viagem permaneceram comigo. Tonim e Zebim, os motoristas e guias, eram quase heroicos aos meus olhos de seis anos, sabiam o caminho, contavam casos, eram uma diversão. No rio, passamos para um batelão onde coubemos todos. Parávamos e acampávamos em praias de terra ou areia. Algumas cercadas de mato, e me lembro de uma onde, nas águas, eu e meus irmãos em fila seguíamos as pegadas do nosso pai: os maiores, provavelmente Lucia, agarrada à cintura dele; eu, a mais nova, no final da fila, agarrada à cintura de Flavio: em todos, o grande temor de pisar no ferrão de uma arraia. Comíamos peixes que Tonin e Zebim pescavam. Subíamos barrancos à beira do rio, e nos divertíamos com o que encontrávamos. E do que mais lembro é de uma praia de areia branquíssima, onde, um pouco antes do nascer do dia, Tia Maria me acordou para ver o nascer do sol. Aquela beleza de vários tons de amarelo e vermelho nascendo quase junto da areia e se erguendo no azul do céu puríssimo, creio que foi, talvez, a primeira consciência que tive de estar vendo uma maravilha.

Anos depois, quis dar aos meus filhos e a Felipe a visão dessa mesma beleza. Zé Gabriel e Galiana eram pequenos quando voltei ao Araguaia, dessa vez para a casa do meu irmão, também sobre um barranco de onde, que pena!, só se via o por do sol, claro que, belíssimo, mas para vê-lo nascer, era preciso ir para o outro lado. O barqueiro me despertou assim que a escuridão começou a se dissolver, e acordei Felipe e meus filhos, prometendo a eles uma visão que também nunca esqueceriam. Mas fomos para um lado onde, através das matas, mal vimos os dourados que, com o que me pareceu grande fraqueza, se erguiam distantes dali. Meus filhos, mordidos por mil mosquitos, a única coisa que desejavam era voltar para a cama. Creio que essa aventura frustrada, tenha sido, para eles, a primeira vez que tiveram consciência de que as promessas da mãe nem sempre podiam ser cumpridas.

                               …

(Crônica publicada em O Popular, em 1 de julho de 2023)

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Maria José Silveira

Maria José Silveira

  • CRÔNICAS & OUTRAS HISTÓRIAS

“Puedo escribir los versos más tristes esta noche”

22/02/2023 – 20:44

“Aunque éste sea el último dolor que ella me causa,
y éstos sean los últimos versos que yo le escribo.”


Mataram o poeta que escreveu esses versos. Mataram Pablo Neruda. Em 1973, poucos dias depois da morte de Allende e do golpe militar que implantou a ditadura no Chile. Mas só agora, cinquenta anos depois, ficou definitivamente provado que ele foi envenenado pela ditadura de Pinochet. Seus restos mortais foram exumados e analisados por especialistas de quatro países que foram unânimes em confirmar o envenenamento pela bactéria do botulismo.

Seu motorista, Manuel Araya, havia denunciado que atendera uma ligação do escritor de noite quando, angustiado, ele disse ter recebido uma injeção enquanto dormia. Três horas depois, estava morto. Neruda estava hospitalizado para supervisão de um tratamento do câncer que, todos sabiam, não o levaria à morte naquele momento. Uma investigação sobre a denúncia do assassinato, no entanto, só pôde começar a ser feita depois da derrocada da ditadura feroz que assassinou não só Neruda, mas milhares de chilenos.

O poeta da língua espanhola mais lido e celebrado no mundo inteiro, Neruda recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 71. Chileno amado em seu país e nas Américas, inclusive aqui no Brasil, seus livros mais conhecidos talvez sejam Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada e Canto Geral.

Pablo Neruda era alguém que participava das dores do seu povo e da América Latina, alguém para quem a poesia era também arma política contra o autoritarismo e as injustiças.

Ditadores odeiam os poetas do povo. Não suportam poemas que se aninham nos corações de homens e mulheres. Sabem da força das palavras que falam da possibilidade de um mundo melhor. Abominam versos que falam da grandeza da liberdade e da necessidade de lutar por ela.

Em suas memórias publicadas postumamente, Neruda escreveu:

“A vida política veio como uma tempestade para me tirar do meu trabalho. Voltei mais uma vez para a multidão. A multidão humana tem sido para mim a lição da minha vida.

Posso chegar a ela com a timidez inerente do poeta, com o medo do tímido, mas, uma vez no seu seio, sinto-me transfigurado. Eu faço parte da maioria essencial, sou mais uma folha na grande árvore humana. Solidão e multidão continuarão a ser deveres elementares do poeta do nosso tempo.

Em solidão, a minha vida foi enriquecida pela batalha das ondas na costa chilena. Fiquei intrigado e apaixonado pelas águas de combate e pelas rochas em combate, pela multiplicação da vida oceânica, pela formação impecável das “aves errantes”, pelo esplendor da espuma do mar.

Mas aprendi muito mais com a grande maré das vidas, com a ternura vista em milhares de olhos que me olhavam ao mesmo tempo. Essa mensagem pode não ser possível a todos os poetas, mas quem quer que a tenha sentido guardá-la-á no seu coração, desenvolvê-la-á no seu trabalho.

É memorável e desolador para o poeta ter encarnado para muitos homens, por um minuto, a esperança.”

Esse foi o poeta assassinado por Pinochet e seus sicários.

Publicado em “O Popular”, em 23/12/2023

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Sexta de crônicas: Oh, céus!

                       

Hoje fiquei perplexa ao ler uma notícia.

Ela dizia que o nosso maravilhoso, amado, prestigiado céu noturno está ficando cada vez mais claro, o que significa que já não podemos ver, a olho nu, todas as estrelas que poderiam ser vistas, por exemplo, quando nascemos.

Talvez muitos de vocês já saibam disso, mas para mim foi uma informação quase aterradora. Saber que as luzes que são acesas à noite pelo nosso planeta estão clareando o céu de tal maneira que obscurecem as luzes naturais de não sei quantas estrelas.

E eu, que adoro o perfil noturno das megalópoles como vou ficar depois de saber disso?

Tampouco são só as luzes das nossas cidades. Toneladas de objetos artificiais e satélites que enviamos para a órbita da Terra, além de outros detritos orbitais, também estão deixando os céus noturnos cada vez mais luminosos, o que não pense que é bom. Não é.

Miroslava Kocifaj, astrônomo cuja equipe realizou esse estudo, descobriu que a quantidade de objetos na órbita da Terra aumentou o brilho geral do céu noturno para mais de 10% acima dos níveis de luz natural em uma grande parte do planeta. Essa estimativa fica acima do limite estabelecido há 40 anos, que permite classificar um local como fonte de poluição luminosa.

E mais: além de tornar o céu mais claro, a quantidade de objetos artificiais no céu também aumenta as chances de colisões entre satélites e outros objetos que, se ocorrerem, geram ainda mais detritos em órbita.

É a chamada poluição luminosa, coisa que eu nem atinava que poderia existir. Ela está clareando tanto o céu que as estrelas estão “desaparecendo” aos olhos humanos. A conclusão é também do Globe at Night, um programa de ciência cidadã que coletou dados sobre a visibilidade estelar durante anos. Essas luzes artificiais iluminaram o céu mais rapidamente para os olhos humanos do que as estimativas pareciam indicar.

“Os satélites são mais sensíveis à luz direcionada para cima, em direção ao céu, mas é a luz emitida horizontalmente que causa a maior parte do brilho”, diz Christopher Kyba, autor de outro artigo que descreve esses resultados.

“A esta taxa de mudança,” alertou, “uma criança nascida em um lugar onde 250 estrelas eram visíveis, vai conseguir ver apenas cerca de 100 delas quando chegar aos 18 anos”.

Então, pergunto: até quando poderão nossos netos e bisnetos cantar a música do Luiz Gonzagal? Aquela que diz “Olha pro céu, meu amor! Vê como a noite está linda!”

E não se trata apenas da beleza das noites que tanto amamos. A diminuição da escuridão é um problema que afeta tanto os humanos quanto os animais e nosso ecossistema. Afeta-nos de maneiras que nem sabemos ainda quais são ou serão. E destrói uma parte importante da nossa herança cultural, aquela que foi e ainda é tão importante para quem sabe ler os astros.  

Por isso, cá do meu canto, digo: Oh, céus! Pobre humanidade que não consegue prever o que destrói quando constrói coisas que parecem apenas úteis e inocentes!

(Crônica publicada em O Popular, em 26/01/2023)

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Enfim, um ano bom à nossa frente!

                                            

Ao chegar ao final de um ano, o que temos, quase sempre, é apenas a esperança de que o ano que virá seja bom. Neste ano, o que temos, coisa rara, é a certeza de que 2023 será melhor. Não digo para cada um, individualmente, mas para o coletivo que formamos como país que terá um ano melhor do que aqueles que vivemos (penamos) durante seis anos.

Saúdo você, 2023!  Um ano pelo qual esperamos demasiado tempo.

Desejo que seja também um grande ano para cada um de nós, indivíduos de uma nação sendo reconstruída. O que, suponho, será possível, pois estaremos vivendo em uma terra que estará retomando a missão de cuidar bem de seus filhos.

Saúdo todos nós que tornamos isso possível!

Não foi fácil, mas tornamos possível tanta coisa!

Tornamos possível, por exemplo, que a partir do dia 2 de janeiro, o Cerrado, a Amazônia e nossos outros biomas detenham o processo de extinção que os atingiu de modo catastrófico; e que a fome dos 33 milhões de brasileiros seja, essa sim, perenemente extinta; que o desmatamento irresponsável cesse e nossas árvores possam respirar em paz, e nossa biodiversidade seja considerada um tesouro valioso; que nossas águas voltem a correr limpas e saudáveis, e a natureza que nos envolve sinta-se alegre por estar junto a nós, e nossa terra seja respeitada como a mãe que é.

Tornamos possível, por exemplo, que as crianças estudem em condições melhores e comecem a entender a riqueza do mundo em que vivem. Que nossos jovens entendam que essa riqueza será sempre nossa se dela cuidarmos bem. Que os adultos saibam, convictamente, o valor do estudo e das ciências. Que em cada cidade, em cada escola e em cada lar, muitos e variados livros estejam acessíveis a todas as mãos.

Que todos possam trabalhar com dignidade e contribuir com seu trabalho para o bem comum. Que, chegando o momento, possam escolher sua profissão, levando em conta seu amor por ela. E que a arte e a cultura floresçam como nunca.

Que as estradas nos levem para um futuro bonito. Que o saneamento básico não espere futuro nenhum para chegar às casa dos brasileiros mais pobres. Que a saúde seja um bem ao qual todos se qualifiquem e aos doentes sejam dados os cuidados necessários, e a vacinação volte a ser exercitada como foi antes desses anos em que até as emas dos jardins do Alvorada fugiam dos remédios fajutos oferecidos por ignorantes indiferentes às mortes que provocavam.

Tanta coisa boa acontecerá nesse ano que mesmo tendo de partir da estaca zero, nossos braços abraçarão e nossa boca sentirá o gosto sumarento e fresco de muitos recomeços.

Venha, 2023!

Sabemos que não será um ano perfeito. Mas será um ano bom, um ano em que voltaremos a nos sentir alegres por sermos brasileiros.

E aqui estamos à sua espera, corações emocionados, desejando um ano feliz para todos nós, brasileiros, que teremos, enfim, nosso país de volta.  

(Crônica publicada no jornal O Popular em 29/12/2022)

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TUDO POR UM TRIZ [Civilização ou barbárie]

Esse é o título de uma coletânea em dois volumes, organizada por João Cesar de Castro Rocha, brilhante professor da UERJ que, nestes tempos de destruição em que vivemos (felizmente, prestes a acabar), tornou-se também um incansável combatente pela reconstrução deste país e contra a retórica do ódio.

“TUDO POR UM TRIZ [Civilização ou barbárie]” é um livro especialíssimo, escrito por 42 autores, entre eles, só para citar alguns, José Miguel Wisnik, Renato Janine Ribeiro, Eliana Alves Cruz, Boaventura da Sousa, Tales Ab´Saber, Edson Krenak, Marcia Tiburi, Daniel Munduruku. E, pelo que sei, dois goianos: Aldo Arantes e eu que, honrada, também estou lá. Cada um, em sua área de atuação, analisa a situação que esse famigerado desgoverno prestes a acabar deixou, e o que é preciso para que a reconstrução a enfrentar possa ser a mais completa e contar com a confiança e contribuição de cada um de nós.

Dia 2 de outubro, tão próximo, marcará de maneira crucial nossa história. Se não sairmos agora desse poço em que nos meteram, seremos levados para um fundo sem fundo e ainda mais bárbaro. Ah, se eu pudesse entrar na cabeça de cada um de vocês que ainda não se decidiu e mostrar o que a maioria dos brasileiros – como as pesquisas mostram – já vê com tanta clareza.

“TUDO POR UM TRIZ”, foi lançado em São Paulo, no Rio e Curitiba. Torço para que também aconteça um lançamento em Goiânia, para que vocês possam curtir a presença do Prof. João Cezar, um mestre que só nos orgulha e cujas palavras, sempre precisas, instigam nossa inteligência. Escutá-lo é um extraordinário prazer intelectual. Feliz do país que tem um intelectual assim para defender sua democracia.

Vejam um trechinho do que ele diz sobre o livro:

“O que está em jogo [nas eleições de outubro] é nada menos do que conter a ameaça autoritária do governo Bolsonaro, que se caracteriza por colocar em cena uma autêntica arquitetura da destruição. Diante de tal circunstância, o que fazer? ‘Esclarecer o pensamento e por ordem nas ideias´, seguindo a lição de Antonio Candido, numa época incerta, na qual  se enfrentava o rigor da ditadura do Estado Novo. Este livro obedece a uma temporalidade bifronte. De um lado, no plano do aqui e agora, trata-se de refletir sobre o real significado de outubro de 2022 tanto para o futuro de uma possível Nação-Brasil, quanto para a sobrevivência da democracia, que se revelou mais frágil do que pensávamos.”   

Por isso tudo é que, agora, depois dos anos sombrios que vivemos, estou confiante no resultado favorável à mudança e reconstrução do país. Digo isso porque esta é minha crônica a poucos dias das eleições, e as pesquisas assim o indicam. Tempos melhores virão. E que venham logo no primeiro turno.

P.S. Para os que desejarem ler ‘TUDO POR UM TRIZ’, e não o encontrarem nas livrarias, ele pode ser adquirido direto na Kotter Editorial, que o lançou. Pelo site http://www.kotter.com.br

(Crônica publicada em O POPULAR, em 22/9/2022)     

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Sexta de crônicas: São quatro


Os gênios da música popular que fizeram oitenta anos neste 2022; quatro os que encantaram e encantam o país de norte a sul; quatro os que só nos deram alegrias desde que os escutamos por primeira vez. Quatro oitentões que, por alguma confluência especialíssima da terra, céu, água e sol brasileiros, nasceram no mesmo ano: Caetano, Gil, Milton, Paulinho da Viola.

Que brasileiro não ama esses quatro?

Deles, Caetano é o que mora de um jeito especial em minhas memórias e meu coração. Ele e Gil. Mas ele, talvez, de maneira mais especial, eu disse, porque é o que acompanhou mais de perto a minha geração. Para cada momento, Caetano teve uma música que marcou a época. Gil também. É quase impossível separar os dois que vieram juntos da Bahia, para cantar as músicas que nos traduziam como se nos conhecessem de perto.

Suponho que é por coisas assim que não desistimos deste país; uma terra capaz de criar tais sons e poesias com certeza vale muito.

Mas foi do Caetano o show que vimos nesse domingo que passou, dia do seu aniversário, portanto, hoje falarei dele.

Seu primeiro disco, aquele da adolescência, em plena ditadura civil-militar, em que ele aparece “sem lenço e sem documento, nada nos bolsos ou nas mãos, eu quero é seguir vivendo, eu vou!”, tornou-se um hino, uma corrente, uma afirmação do futuro de sol e alegrias que poderíamos ter.

Mais tarde, numa cela da prisão, quando ele vê “pela primeira vez, a tal fotografia em que não apareces nua, mas coberta de nuvens, Terra, Terra”, foi a mais bela declaração de amor coletiva ao planeta que era o nosso, e justo num momento em que a vida se tornava cada vez mais sombria por esses quadrantes. Não à toa ele era um músico que estava preso.

Depois, do exílio ele nos manda, no LP em cuja capa está com um casaco com gola de pele para um frio tão frio, desconhecido aqui, mas de onde canta músicas calorosas, descrevendo uma “London, London” tranquila onde guardas não tinham sequer cassetetes, e era linda, mas ele não era de lá e só queria voltar pra sua terra, sua gente, e escutar a risada da Irene. Quem, naquela época, não quis escutar a risada da Irene que, instantaneamente, se tornava irmã de todos nós?

Mais tarde ainda, já de volta, sua geração então adulta e tendo filhos, lá vem ele com seu leãozinho dourado. Quem não se emocionou? E foi uma época feérica, com discos e mais discos, shows e mais shows, músicas que faziam de ônibus, hotéis, e de qualquer lugar onde Caetano estivesse, mundos iluminados, amores à flor da pele. Tudo que ele cantava era uma beleza, um olhar amoroso para a vida, um caminho de emoções se abrindo em um país onde a felicidade parecia possível, parecia prestes a chegar.

E veio o “tempo, tempo, tempo, compositor de destinos”, sua geração envelhecendo, e ele cantando com seus três filhos e a parceira Bethânia.

Não é mesmo uma beleza tudo isso?!

Crônica publicada em O Popular, em 11/08/2022

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Sexta de Crônicas: Isso aconteceu na semana passada, não em 1500

A menina de 12 anos tinha cabelos, olhos pretos, e a graça natural do despontar da adolescência. Uma adolescente como qualquer outra que certamente olha o mundo com a confiança de quem tem todo o futuro pela frente, porque esse é o natural da vida nessa idade: o curto passado atrás, o presente sendo vivido, e um largo futuro à espera de sua chegada. 

Só que ela não chegou. Era uma adolescente Yanomami.

            Foi sequestrada, estuprada e assassinada no presente desumano que a pegou.

            Junto com ela, uma criança de quatro anos foi também sequestrada e atirada no rio Uraricoera. E uma outra mulher, que também jogada no rio, conseguiu nadar e sobreviver.

            Os garimpeiros atacaram quando os homens tinham saído para caçar e a maioria das mulheres estava na roça. Chegaram de surpresa, e levaram as três para o acampamento de um garimpo ilegal de ouro. Lá, violentaram e mataram a adolescente.  

            Esse ataque foi apenas um dos muitos perpetrados por garimpeiros ilegais que têm invadido sem tréguas o Território Yanomami e provocado toda uma série de massacres, atentados e abusos. Transformaram em inferno a vida dos indígenas nessa região que é deles e que, por lei, deveria estar protegida contra esses crimes inqualificáveis.

A gravidade desse caso forçou a ministra Carmen Lucia, do Supremo Tribunal Federal, a afirmar durante uma sessão na mesma semana: “As mulheres indígenas são massacradas sem que a sociedade e o Estado tomem as providências eficientes para que se chegue à era dos direitos humanos para todos, não como privilégio de parte da sociedade. Não é mais pensável qualquer espécie de parcimônia, tolerância, atraso ou omissão à prática de crimes tão cruéis e gravíssimos”.

É doloroso e assustador saber que esses ataques vêm acontecendo, e de forma, crescente desde 2021, como resultado da maneira como esse desgoverno tem tratado a questão indígena e o garimpo ilegal. A estimativa é de mais de 20.000 garimpeiros ilegais escavando ouro no território de 360 comunidades e cerca de 30.000 yanomami.

Querem que retrocedamos aos anos de colonização do país, quando os indígenas que nasceram e viviam aqui foram expulsos de suas terras e afugentados para regiões cada vez mais distantes. Querem impor a lei do “marco temporal”, defendida sobretudo por ruralistas, mineradores e garimpeiros, que dispõe: os indígenas só teriam direito à terra que estivesse sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Lei perversa que, na prática, faria boa parte das etnias indígenas, antes expulsas, perdessem os direitos originários a seus territórios.    

Se nós, da cidade, parássemos para pensar que tivemos mais de 500 anos para entender o mal que causamos aos que estavam neste país muito antes de nós, chacinando-os, afugentando-os, desprezando-os, esquecendo que eles foram os primeiros donos desta terra, e as mulheres indígenas nossas primeiras mães, será que não ficaríamos indignados e não teríamos vergonha de nossa indiferença ao ver esses descalabros sendo cometidos até hoje?

Eu fico e tenho.

(Publicado em O Popular em 5 de maio de 2022)

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Sexta de crônicas: PREPARANDO UM NOVO ROMANCE

Quero contar a vocês: o romance que comecei a escrever na pandemia e ainda estou escrevendo é sobre Goiás. Mais especificamente, sobre o cerrado. Mais especificamente ainda, sobre as águas do cerrado.

Tudo começou com os alertas de uma das maiores autoridades sobre o tema, o cientista e pesquisador, Altair Salles: nosso cerrado está morrendo, ele disse. Chegou mesmo a afirmar, taxativo porque muito bem fundamentado em pesquisas, nosso cerrado já morreu. E com ele, as nossas águas. Nossas abundantes, límpidas, milenares águas.

É de uma tristeza tão terrível essa constatação, tão condenatória de nossos passos como goianos, nós que nos apossamos deste que é o mais antigo bioma do planeta, com suas árvores retorcidas cujas raízes se aprofundam dentro da terra e alimentam os lençóis freáticos que alimentam os aquíferos que, por sua vez, alimentarão boa parte das águas do país. Sim, as águas do país. Somos parte importante dos responsáveis por elas.  E o que fazemos? Eis questão.

O protagonista do meu romance é Zé Minino que, mal começando a adolescência, se junta à Coluna Prestes quando ela passa por Goiás, e a acompanha até onde é possível. Na Coluna, ele encontra Maria Branca, mocinha fugida de uma fazenda. Por circunstâncias que não vem ao caso contar aqui, os dois passam um tempo na Fazenda Mossoró, onde impera Santa Dica e sua Coorte de Anjos. Só depois, eles voltam para a pequena terra que era dos pais de Zé Minino.

Meu protagonista tem o dom de farejar água. E não digam que isso é impossível. Para Zé Minino, vocês verão, não é.

Enquanto os filhos nascem, Zé vai rasgar as estradas da Marcha para o Oeste, abrindo terras devolutas de Goiás para migrantes de várias procedências. Também participa da revolta dos posseiros de Trombas e Formoso. E um pouco depois, vai trabalhar na construção da Nova Capital.

Sempre que volta a sua terra, constata como as boiadas crescem, pisoteando nascentes.

Os filhos vão tomando cada um seu rumo e vem a ditadura civil- militar. Logo, é a vez da chegada da soja, com seus variados problemas, e o agro adquire a força que tem hoje.

Zé Minino e Maria Branca envelhecem junto às nascentes que secam, os rios que se enchem de imundície e dejetos tóxicos, as preocupações que aumentam.

O romance ainda não está pronto, mas já tenho em mãos o que chamo, imitando o cinema, de “copião”. É um bom momento da escrita de um livro porque sabemos que a parte fundamental do que desejamos está ali, não vai mais fugir. O romance está com sua estrutura feita, forma e linguagem definidos, personagens já com sua vida e características enquanto o tempo se desdobra em acontecimentos e emoções, e as cenas se entrelaçam uma à outras. É hora de ler, reler e treler o que foi escrito, burilar a linguagem, fazer cortes ou acrescentar o que estiver faltando. É o momento que mais amo do meu trabalho por que a partir daí, ele só pode melhorar.

Se tudo der certo, será publicado em 2023

(Publicado no Jornal O Popular, em 24/03/2022)

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SAUDADE DAS RUAS

                                                             

Seis horas, e o calor está intacto. Se tem um momento em que São Paulo fica ardida e seca é quando resolve – ou melhor, resolvem por ela – esticar ao máximo as ondas de calor. Mas, desculpa, não vou falar disso. Nem vou falar da guerra absurda, nem da Ucrânia, muito menos de Putín, de Biden, da OTAN, nem do cancelamento insano de artistas e atletas russos pelos EUA e países da Europa, como a Itália cancelando seminários sobre Dostóievski e a Metropolitan Ópera House de Nova York cancelando a soprano Anna Netrebko, menos ainda das motociatas do “vocês sabem quem” ilegalmente já em plena campanha, nem do seu comparsa Arthur do Vale (o abjeto Mamãe Falei) que foi à fronteira da Ucrânia para se gabar da ucranianas, “verdadeira deusas, fáceis porque são pobres”. Não vou falar sobre nada disso porque é só abrir o jornal para ver que a terra parece em transe, como bem definiu Glauber Rocha, tempos atrás.  

                Hoje, mais uma vez, não estou em condições de entrar nessa realidade de insanidades que nos envolve com seus grudentos dedos midiáticos.  

                Sabem o que anda me faltando? As ruas. Tudo indica que a Ômicron está diminuindo, mas ainda é preciso cautela. E de minha parte, continuo evitando caminhar pelas ruas, justo onde melhor se vê as fatias do mundo para daí escrever as linhas mais afeitas a uma crônica. A morte de uma velha árvore, por exemplo, derrubada pelo temporal recente. Quase duzentas árvores mediram forças com as chuvas fortes que têm assolado São Paulo nesses últimos dias. Uma curta mas dolorosa guerra travada na natureza. Ventos irados contra antigas e belas árvores que por anos vinham embelezando ruas desta cidade construída a partir de sossegados vales e chácaras que ainda mantêm, em lugares privilegiados, lembranças encantadoras daquele tempo. Por incrível que possa parecer a alguns, São Paulo é uma cidade com belas árvores em seus bairros mais agradáveis, onde não é raro encontrar bananeiras, jabuticabeiras, amoreiras nos quintais (nesta cidade-vertical, ainda existem esses pequenos respiradouros que lhe dão uma graça inesperada no meio do concreto e do cimento).

                Nas ruas, no entanto, o que mais vemos são as pessoas e a riqueza de sua diversidade. É isso o que mais gosto. É disso o que sinto mais falta nessa pandemia. Caminhar junto com pessoas de todo tipo, origem, classe, gênero, inclinação sexual, vestimenta, manias, loucurinhas; é o mundo que passa todo dia por uma avenida como a Paulista. Um retrato da cidade em seu cotidiano, com seus participantes vindos dos centros, das periferias, de outras cidades, estados e países, moradores, refugiados, turistas, executivos, trabalhadores, ricos, pobres, sem-teto – cada vez mais sem-teto –, no movimento incessante da megalópole, o redemoinho. No meu romance, “Paulicéia de mil dentes”, foi isso que procurei mostrar: um romance que me deu muito contentamento em escrever, ainda que seu núcleo não seja o de uma história alegre.

                Por tudo isso é que torço para logo voltar a caminhar pelas ruas do meu bairro.

Para depois contar para vocês.

(Crônica publicada em O Popular, em 10/03/2022)

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Sexta de crônicas: Teve festa e eu não fui

Para Lucia

                Minha irmã fez 80 anos. A ameaça da Ômicron em aeroportos e aviões não me deixou ir para lhe dar meu abraço de irmã feliz em comemorar sua vida. Senti muito. A data é tão significativa, e adoro reuniões de família. 

                Escrevi “a data é tão significativa” e fiquei aqui pensando sobre isso. Todo aniversário comemorado é significativo, mas à medida que envelhecemos, as datas redondas, por algum motivo inexplicável, tornam-se especiais. São celebrações de uma vida, com os altos e baixos que toda vida tem, e um grande momento de alegria por ser exatamente isso, celebrações, e poder ser também, e ao mesmo tempo, uma porta se abrindo para uma boa caminhada até os cem, cento e poucos anos, idade que hoje se tornou uma conquista possível de nossa irrefreável humanidade. Desde que se mantenha a lucidez, sine qua tudo isso seria vão.

                É curioso mas creio que só agora, tempo em que também envelheço, é que entendo completamente a ideia dos parabéns oferecidos, com palmas, a cada aniversário que fazemos. Não é fácil superar os obstáculos que o mundo vai colocando a nossa frente. É preciso força. Coragem. Sorte. Talvez não tenha mesmo outro momento tão merecedor de parabéns.

                No aniversário de oitenta anos de minha mãe, recordo seu sorriso de corpo inteiro – como, aliás, era como ela sorria – ao nos agradecer pela festa e pelas oitenta cestas básicas para os pobres de sua paróquia, o presente dos filhos, a seu pedido. O sorriso da minha irmã, vi quando me enviarem as fotos da festa que seus filhos organizaram em sua homenagem. Houve música (minha irmã é poeta e compositora, seus livros publicados e disco gravado são lindos); houve dança (minha irmã é quase um pé-de-valsa); houve a sua volta os seus cinco filhos, nove netos, genros e noras (foi uma mãe de enorme dedicação); houve a seu lado também os irmãos (menos, pesarosamente, eu); e houve primos e amigos. Todos vacinados e bem. Quer alegria maior?

                Penso também nos meus amigos que fizeram oitenta anos. Todos durante a pandemia. Mesmo assim, conseguiram escapulir para comemorar com a família. É tão natural isso. Tão necessário, esse encontro com os seus nesse momento.

No aniversário da minha mãe, não me ocorreu pensar se um dia chegaria, eu também, a completar oitenta anos. Era algo ainda distante; não estava na ordem dos meus pensamentos; era um futuro que não me cabia vislumbrar naquele momento. Já hoje, nos aniversários da minha irmã e dos meus amigos, penso, ainda que fugazmente: chegarei?

Espero que sim. Mas há um se aí. E este “se”, esta indeterminação do futuro, é outra coisa que o envelhecimento nos obriga a ver mais de perto. Não sempre. Não a toda hora. Mas em momentos como este. E só penso nisso, na verdade, porque não fui à festa. Se tivesse ido, estaria pensando apenas na beleza e alegria de se comemorar os oitenta anos bem vividos de uma irmã.    

(Crônica publicada em O Popular, em 24/02/2022)

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