
Maria José Silveira
“Puedo escribir los versos más tristes esta noche”
22/02/2023 – 20:44
“Aunque éste sea el último dolor que ella me causa,
y éstos sean los últimos versos que yo le escribo.”
Mataram o poeta que escreveu esses versos. Mataram Pablo Neruda. Em 1973, poucos dias depois da morte de Allende e do golpe militar que implantou a ditadura no Chile. Mas só agora, cinquenta anos depois, ficou definitivamente provado que ele foi envenenado pela ditadura de Pinochet. Seus restos mortais foram exumados e analisados por especialistas de quatro países que foram unânimes em confirmar o envenenamento pela bactéria do botulismo.
Seu motorista, Manuel Araya, havia denunciado que atendera uma ligação do escritor de noite quando, angustiado, ele disse ter recebido uma injeção enquanto dormia. Três horas depois, estava morto. Neruda estava hospitalizado para supervisão de um tratamento do câncer que, todos sabiam, não o levaria à morte naquele momento. Uma investigação sobre a denúncia do assassinato, no entanto, só pôde começar a ser feita depois da derrocada da ditadura feroz que assassinou não só Neruda, mas milhares de chilenos.
O poeta da língua espanhola mais lido e celebrado no mundo inteiro, Neruda recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 71. Chileno amado em seu país e nas Américas, inclusive aqui no Brasil, seus livros mais conhecidos talvez sejam Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada e Canto Geral.
Pablo Neruda era alguém que participava das dores do seu povo e da América Latina, alguém para quem a poesia era também arma política contra o autoritarismo e as injustiças.
Ditadores odeiam os poetas do povo. Não suportam poemas que se aninham nos corações de homens e mulheres. Sabem da força das palavras que falam da possibilidade de um mundo melhor. Abominam versos que falam da grandeza da liberdade e da necessidade de lutar por ela.
Em suas memórias publicadas postumamente, Neruda escreveu:
“A vida política veio como uma tempestade para me tirar do meu trabalho. Voltei mais uma vez para a multidão. A multidão humana tem sido para mim a lição da minha vida.
Posso chegar a ela com a timidez inerente do poeta, com o medo do tímido, mas, uma vez no seu seio, sinto-me transfigurado. Eu faço parte da maioria essencial, sou mais uma folha na grande árvore humana. Solidão e multidão continuarão a ser deveres elementares do poeta do nosso tempo.
Em solidão, a minha vida foi enriquecida pela batalha das ondas na costa chilena. Fiquei intrigado e apaixonado pelas águas de combate e pelas rochas em combate, pela multiplicação da vida oceânica, pela formação impecável das “aves errantes”, pelo esplendor da espuma do mar.
Mas aprendi muito mais com a grande maré das vidas, com a ternura vista em milhares de olhos que me olhavam ao mesmo tempo. Essa mensagem pode não ser possível a todos os poetas, mas quem quer que a tenha sentido guardá-la-á no seu coração, desenvolvê-la-á no seu trabalho.
É memorável e desolador para o poeta ter encarnado para muitos homens, por um minuto, a esperança.”
Esse foi o poeta assassinado por Pinochet e seus sicários.
Publicado em “O Popular”, em 23/12/2023