Teatro

ISABEL DO BRASIL

Maria José Silveira

“Se a Abolição foi a causa da queda do Império, não me arrependo; considero que foi digno perder o trono por ela.”

ISABEL DO BRASIL
Maria José Silveira

Personagem – Princesa Isabel (1846 -1921)

(Cenário: Camarim. Um cabide com algumas roupas penduradas, mesa e cadeira. Na mesa, um lindo vaso de camélias brancas. No fundo, um painel onde a atriz vai projetar algumas fotos. A atriz entra. Veste uma saia longa branca e uma blusinha branca simples. Está meio irritada. Traz um laptop e o coloca na mesa, com a bolsa, etc. A atriz tem que ser muito boa porque ela não só vai ter que passar de uma personagem a outra em alguns momentos, como vai ter que ir se transformando na frente do público. Além disso, tem que ter boa voz. Ela começa:)

O diretor tem cada ideia! Logo eu, fazer a Princesa Isabel! Sei tão pouco dela, e não é uma figura que me emocione, sei lá! Sei que assinou a Lei Áurea, claro, mas parece que nem chegou de fato a governar. Além disso, é muito séria e sem graça. Eu disse, Diretor, não dá. Ela é velha, gorda, branca. Eu sou jovem, magra, morena ….. E ele, Atriz que é atriz se transforma. Se você for boa atriz, ficará velha, gorda e sem graça no palco. Além disso, ela não é gorda. Tem o corpo das mulheres da época. E será possível que você acha que ela nasceu velha? E deu aquela risadinha dele. Cretino. Ele estava insuportável hoje.
Bom. Deixa eu começar a ver o texto.

(Abre o laptop que havia deixado na mesa e começa a ler:)

A Princesa Isabel tem 19 anos e escreve uma carta para o Conde D´Eu, depois de um ano de casamento:
“Meu querido, meu amado Gaston:
“Como anseio, meu querido, para lhe ver outra vez. Eu o amo tanto, meu amado, meu queridinho, como ficarei contente de me ver outra vez em seus braços sempre tão amorosos! Quando poderei dormir em seu querido ombro!!! Espero que seja logo, logo!!!”

(Atriz, surpresa: Então, ela amava o marido!? Mas não foi um casamento arranjado!? Continua:)

“Foi há um ano atrás hoje a esta hora que tive a felicidade de receber seu pedido de casamento! … Não posso deixar esse abençoado dia passar sem lhe escrever alguma coisa nesta hora… Oh querido, jamais me arrependerei de ter lhe escolhido no fundo do meu coração e ter aceito ser sua esposa. Eu o amo ternamente, meu queridinho; a cada dia, eu o amo mais. Como seria bom ter você aqui comigo, meu lindo amado!”

(Atriz: Ora, ora. Amor verdadeiro! A última coisa que eu pensaria encontrar na vida dessa princesa.)
(A atriz projeta uma foto dos dois no painel e volta a ler. Aos poucos vai deixando de ler para interpretar a princesa.)

As pessoas às vezes me perguntam como foi minha vida no Brasil.
Perguntam como foi minha infância.
Imagino que deve ter sido como a de qualquer criança da aristocracia que vive em seu mundo à parte. Um mundo no qual somos criados de uma maneira talvez especial, e com certa expectativa de serviço e deferência.
Eu era alegre e feliz. Amava a todos os que me rodeavam e só queria agradar. Acho que fui, realmente, uma menina doce e amável.

(A atriz projeta uma foto da princesa criança ao lado do pai, e diz:)

Aqui tem uma cartinha dela pro pai:
Meu paizinho idolatrado: Estou morrendo de saudades! Volte logo! Quero lhe mostrar minhas lições. Fiz tudo muito bem feitinho, papai, e fui muito elogiada! Mil beijinhos pro senhor de sua filha que muito o adora, Isabel Cristina.

(A atriz dá um sorrisinho de simpatia e vai passando a interpretar como se fosse a princesa:)

Meu mundo como princesa herdeira era todo em torno do meu pai e de minha mãe.
Um homem notável pela autoridade e autocontrole, meu pai, e que nos amava com devoção. Eu verdadeiramente o adorava! E creio que sempre o coloquei em um pedestal.

Também ele, o grande e poderoso D. Pedro II, fazia tudo por mim! Desde pequena. Na grande pompa da minha cerimônia de batismo, por exemplo, ele fez questão de trazer água do Rio Jordão da Palestina! E como era tradição na família real de Bragança de Portugal e Brasil, na qual nasci, me deu oito nomes: Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga. Quando bem pequenina, às vezes me esquecia de algum deles, e fazia meu pai gargalhar!
Morávamos na residência imperial no “Palácio de São Cristovão, nos subúrbios do Rio, em uma leve ladeira, no meio de um grande e lindo parque.” Os meses de verão a família passava na Fazenda de Santa Cruz, a oeste da cidade do Rio de Janeiro. Ou no Palácio de Petrópolis que meu pai tinha mandado construir.

A corte imperial era uma sociedade restrita, íntima. Não nos era permitido sair do palácio, a não ser em raras ocasiões, e sempre acompanhadas. Mas os amigos vinham brincar conosco. Mariquinhas e Amandinha, filhas do Visconde de Paranaguá, e Adelaide de Taunay, filha do grande pintor Taunay, foram amigas de toda a minha vida e desde essas primeiras brincadeiras da infância.

Fui criada nesse mundo separado, cercada pela corte pessoal que me servia. Minha Rosa, babá querida, e depois, minha amada Condessa de Barral, preceptora da minha vida inteira. Brilhante, de grande charme e elegância, a condessa nos encantou desde o primeiro dia. A nós, as duas filhas, e a meu pai de quem passou a ser grande amiga e conselheira.

Falavam muito de sua influência sobre meu pai, nessa época, e acredito que isso era verdade, porém as más línguas que insinuavam algo maior do que essa afeição de inteligências, eu acho que jamais estiveram certas.

Reuníamos na sala de estudos por nove horas e meia por dia, seis dias por semana. Josefina e eu estudávamos as línguas latina, francesa, inglesa e alemã, a história portuguesa, francesa e inglesa, literaturas portuguesa e francesa, geografia e geologia, astronomia, química, física, geometria e aritmética.
Meu pai era muito exigente com nosso preparo intelectual.
Dizia que deveríamos receber a mesma educação que um filho receberia, acrescidas da parte especial da educação de uma mulher.
Assim, aprendíamos também desenho, piano, dança e etiqueta. Mais tarde, italiano, história da filosofia, política econômica, grego. Tínhamos professores especiais. Entre eles, meu próprio querido pai. Sempre que seus assuntos imperiais permitiam, ele vinha nos administrar lições. Normas, valores e hábitos, de tudo isso meu pai cuidava.

Não sei se foi a melhor vida que uma pessoa pode ter, mas para mim foi. Sempre fui extremamente agradecida a ele por nos ter ensinado tanto e por nos ter proporcionado professores excelentes. A meu pai devo meu entendimento sobre o que vejo e sei.
Humildemente, acho que a ele devo tudo.

(A atriz vai até o laptop e projeta foto dela adolescente com o pai e ela adolescente sozinha.)

Na adolescência, tive minha fase de pequenas rebeldias, pequenezes típicas da idade. Às vezes, a Condessa de Barral me repreendia por não ter feito adequadamente minha higiene pessoal (ri), ou por estar com aparência desleixada para uma princesa. Isso era merecido, reconheço.
Mas quando ela me repreendida por minha “fala insolente”, eu não achava justo. Considero como uma das minhas qualidades ser capaz de dizer e defender o que penso. Sou direta e enfática, e até meu pai gostava muito disso. Comentava que eu era a única pessoa com a coragem e o atrevimento necessários para lhe dizer verdades.

Dessa época de minha vida, o que mais senti foi a completa falta de informações sobre as modificações do meu corpo. Tive que aprender algumas coisas intuitivamente, ou com minha Rosa que, por sua vez, apesar da idade, parecia saber pouquíssimo. Quando por primeira vez veio meu período, achei que fosse morrer. Que estava tão doente quanto estava quando tive a febre tifoide.

Sabia tão pouco de tudo isso que foi a meu Gaston que perguntei, na primeira vez que ele viajou depois do casamento, se eu continuaria a ter meus períodos em sua ausência! Mesmo hoje, depois das gravidezes e três filhos, continuo a saber muito pouco sobre tudo isso. Se tivesse tido uma filha, não sei se poderia lhe ensinar muita coisa. Acho que minha mãe nada me ensinou porque tampouco sabia. E mesmo a Condessa de Barral, tão sofisticada e segura em tantos assuntos, sobre esse apenas me avisou que toda mulher, depois de certa idade, tem um pouco de sangue saindo de dentro de si durante alguns dias, todos os meses. E que se não saía, era sinal de gravidez. Acredito que, na verdade, só os médicos sabem mais do que isso.

Outra coisa que eu não sabia, até os 17, 18 anos: como era um baile. Nossa vida social era quase nula, e meu pai nesse ponto era muito rigoroso. Em compensação, ele nos dava muito de seu tempo. No salão, todas as noites, conversámos e líamos em voz alta, um hábito que mantivemos por toda a nossa vida. Minha felicidade era agradá-lo e fazê-lo sorrir.

(A atriz projeta outra foto.)

Eu era também muito romântica. Sabia que meu destino seria me casar com alguém que meu pai escolheria; ainda assim, vivia me apaixonando pelos poucos primos cujos retratos eu via. Passei muito tempo dormindo com um retrato do meu primo Pedro, duque de Penthièvre, sob meu travesseiro. Alto, louro, esguio, era, literalmente, o príncipe encantado com o qual sonhava. Eu dizia a meu pai que não me casaria com ninguém, a não ser com Pedro.

Meu sábio pai sorria e me dizia que eu me casaria com quem ele escolhesse, pois eu sabia muito bem que sua escolha sempre seria a melhor para mim. E como eu acreditava que a melhor escolha para mim seria Pedro, concordava com ele, e ficávamos felizes os dois.
Mas que risco corri nessa época! Solano Lopez – justo ele, que depois causaria tantos problemas a nosso país com a Guerra do Paraguai – sonhava criar um Império espanhol que enfrentasse o Império português na América, com o consentimento do Brasil! Nesse seu plano louco e, felizmente, de pouca duração, ele planejava se casar comigo, a herdeira do trono, unindo-se ao sangue real e estabelecendo uma dinastia. Eu mal tinha 10 anos na época em que o general, então com 19 anos, veio visitar meu pai, e fomos apresentadas a ele, como de praxe. Achei-o antipático e rude, com aquela pose impertinente de militar. Não acredito que tenha passado pela cabeça do meu pai a menor intenção de se aliar a ele. Só que minha irmã Leopoldina, para me perturbar, passou a me chamar de Senhora do Império do Brasil e do Paraguai. Mal sabia ela o quanto ainda iríamos lamentar a existência desse déspota.

De uma coisa, eu tinha certeza, meu pai não me obrigaria a casar com quem eu não aceitasse. E sua primeira escolha foi de fato meu primo Pedro que, para minha sorte, já não estava disponível. Digo para minha sorte porque, caso contrário, eu não encontraria meu doce Gaston.

(A atriz projeta uma foto do jovem Conde d`Eu.)

Quando Gaston, o Conde D`Eu, entrou com seu primo Augusto na sala onde eu e Josefina os esperávamos aquela tarde, eu soube que o amaria. Ele estava destinado à minha irmã, mas foi a mim que escolheu, e foi a ele que eu escolhi.

Os dois eram sobrinhos do poderoso Rei Leopoldo I da Bélgica, que – eu soube depois – escreveu a meu pai: “Estamos enviando a você boa mercadoria”. Não aprovo esses termos, mas sei que houve negociações de bastidores, como sempre havia, mas no nosso caso foi nosso corações que escolheram.

(A atriz projeta outra foto no painel. Volta a ler:)

(Atriz: Ei, olha aqui! Uma carta que não faz parte do texto… e dessa a princesa não deve ter tido conhecimento, nunca. É de Gaston para a irmã, depois do primeiro encontro dos dois primos com as duas irmãs.
“As princesas são feias, mas a segunda decididamente menos atraente do que a outra, mais baixa, mais pesada, e em suma menos simpática…. Quanto ao caráter, nenhuma revelou nada porque durante os primeiros dois encontros elas responderam, como é natural, apenas com monossílabos.” …. Coitadas! Elas eram feias mesmo! Olha isso: “… para que você não fique chocada quando vir minha Isabel, eu lhe aviso que seu rosto não tem nenhuma beleza; acima de tudo tem uma característica que não pude deixar de observar. É que ela não tem nenhuma sobrancelha. Mas seu porte e sua figura são atraentes.”
(A atriz: Nenhuma sobrancelha? Ela se levanta e examina as fotos do painel, passando os dedos sobre as sobrancelhas da princesa. Huum… Gaston, você também era um pouco exagerado, hein? Parece que ela tem um pouquinho…Volta à voz da princesa.)

Gaston era alto, magro, de cabelos claros, inteligente… um pouco surdo, mas nada que prejudicasse nossa conversa infinita que começou essa tarde. Exatamente como eu sonhava.
Eu lhe escrevi depois, em uma de minhas primeiras cartas para ele:
“Hoje é o aniversário de nosso primeiro jantar e conversa no estúdio de Mamãe… Foi durante esse dia que eu definitivamente comecei a preferir você a Gustavo, que comecei a senti um grande e terno amor por você.”

(Atriz, mexendo no laptop: Tolinha! Para Gaston não foi bem assim.
Foi D. Pedro quem fez a proposta que, segundo ele diz em carta para a irmã, “no começo me perturbou muito, mas acredito cada vez menos que seja meu dever rejeitar essa importante posição que Deus colocou em meu caminho.”

Mas veja só: ao que tudo indica, a meiga e afável princesa acabou realmente conquistando o amor do Conde! Logo depois da lua-de-mel em Petrópolis, ele escreve palavras agora bem diferentes para a mesma irmã: “Tenho certeza que você gostará extremamente de Isabel quando a conhecer. Porque ela é verdadeiramente muito boa e doce e me faz extremamente feliz. Estamos vivendo aqui em um bangalô muito bonito no meio das montanhas coberto com a vegetação mais linda e quase sempre coberto de neblina.” Ora, ora, taí uma coisa interessante! Gaston se apaixonou por ela na lua-de-mel. O que quer dizer que a Princesa Isabel devia ser boa de cama. (ri) Com aquela doçura toda, simpatia, amor por ele e, além disso, boa de cama. Que sorte grande teve o rapaz! Se encantou. (ri) Isso vale a história. A princesa feinha, tão séria, tão ingênua…. foi capaz de conquistar seu homem! Dessa eu gostei, Isabel Cristina. Parabéns!)

(volta ao texto:)

Fomos morar em São Cristóvão. Minha relação com meu pai mudou em um aspecto: pela primeira vez, ele começou a me tratar como adulta e alguém que um dia poderia governar o país. Começou a me levar, junto com Gaston, em suas visitas de inspeção, me mostrando tudo o que devia ser visto, para que eu tivesse uma ideia do todo: fortes, navios, acampamento militares, departamentos públicos. De fato, tudo.

Comecei também a ter um programa de leituras estabelecido por Gaston, com a concordância de meu pai, sobre a história contemporânea do Brasil e outros países. E a ler os jornais mais detidamente. Inclusive as críticas e as caricaturas que tantas vezes me faziam chorar.

Diziam horrores do meu pai. Que ele era mão fechada. Que o Paço Imperial vivia imundo e praticamente em ruínas! Que o Imperador e sua família custavam ao país o que 14 presidentes custariam aos Estados Unidos! Ou então, ao contrário, que meu pai era caloteiro! Que não honrou a dívida com o Hotel onde se hospedou com sua comitiva, no Porto, mesmo com a proprietária vindo à corte fazer a cobrança! E que nunca pagou os dotes das princesas, razão das brigas com o meu marido!!! Isso eu fui perguntar a ele. Ah, fui! Perguntei pros dois. Meu pai me fuzilou com os olhos e saiu da sala. Meu esposo me falou: “Isabel, você vai ter que se acostumar com as vilanias dos jornalecos nativos ou vai transformar a nossa vida em um verdadeiro inferno” – e também saiu da sala.

Foi mais ou menos por essa época que a crise com o Paraguai passou a ser um problema sério para o país.

Eu não entendia nem me interessava muito pelo que estava acontecendo. Deixava esses assuntos de Estado para meu pai e meu marido. Eles tinham mais disposição para isso do que eu; meus principais interesses estavam em outra coisa. Eu era muito jovem.

(Atriz: Bom, pelo menos ela admite sua falta de interesse em cuidar desses assuntos. Não é daquele tipo de mulher que não faz sua lição de casa e depois culpa os homens, dizendo que foram eles que não a deixaram fazer isso e aquilo. Isabel reconhece que não se interessava por nada daquilo. Se sua cabeça estivesse nesses assuntos de Estado, ela teria feito valer sua voz. Não responsabiliza o pai e o marido por uma falta de interesse que era dela. Outro ponto a seu favor. Tinha 19 anos e o que ela queria era se divertir ao lado do seu Gaston.)

Logo partimos, meu esposo e eu, em nossa primeira viagem para a Europa onde ficamos seis meses, e amei cada segundo. As paisagens, os museus, os parentes e amigos, a música, os bailes, as danças. Fiz coisas que nunca havia feito antes. Fui a conferências, óperas, teatros, bailes, bailes. Descobri um mundo e uma vida que me proporcionavam grande prazer. Ao lado do meu Gaston, fui completamente feliz.

Quando retornamos ao Brasil, a crise levara à guerra contra o Paraguai. Gaston partiu imediatamente, animado com o papel que poderia cumprir a favor do seu novo país.
Ai, que saudades eu sentia dele. Física, espiritual, completa:

(Canta uma música lírica e doce)

Três meses depois, meu esposo voltou doente e abatido. Mas magoado com meu pai, incapaz, dizia ele, de compartilhar algum tipo de poder. Meu esposo, na época, tinha o ardor de seus vinte e três anos, e meu pai, a maturidade e o controle da meia-idade. Felizmente, nenhum deles jamais exigiu de mim uma tomada de posição sobre a tensão entre eles. Eu morreria se tivesse que decidir por um dos dois.

(Atriz, olhando para as fotos no painel: Curioso como em grande parte das fotos ela está de perfil. Terá sido escolha dela mesma ou recomendação do fotógrafo, tentando valorizar seu melhor ângulo?)
Meu querido Gaston era uma pessoa de saúde frágil. Seus brônquios reagiam a qualquer stress mais forte. Cuidar dele, porém, nunca me foi um esforço, nunca foi tedioso. No palácio onde vivíamos nas Laranjeiras, passeávamos pelos jardins, adorávamos plantas. Começamos a fazer uma coleção de orquídeas. Chegamos a ter mais de noventa e três espécies.

Nossa vida foi, naqueles primeiros tempos, de grande bonança. Passávamos boa parte do tempo “nos divertindo juntos ou estudando!!, vivendo a felicidade que encontramos na companhia um do outro.” Às vezes, recebíamos os amigos, sobretudo aos domingos, com orquestra e danças e programas de música.

(Canta um pouco)
(A atriz projeta outa foto e comenta: Uma princesa toda doméstica, isso existe?! Só faltava ter dotes culinários.)

Uma grande tristeza nos atingiu nesses anos: minha irmã Leopoldina morreu de febre tifoide, deixando dois filhos. Meu pai vinha há tempos planejando fazer uma longa viagem à Europa, e a tristeza com o falecimento de minha irmã o fez compreender que essa mudança de ambiente seria muito importante para ele e minha mãe.
Foi por essa viagem dele que assumi minha primeira regência, com 25 anos.

(A atriz vai cantando até o cabide, pega uma saia da princesa da época e a veste.)

O Visconde do Rio Branco era o Chefe do Gabinete e a pessoa em que me apoiei. Além disso, meu pai, confiando em mim mas sabendo de minha total falta de experiência, deixou-me instruções precisas. Eu tinha também meu Gaston a meu lado, embora toda sua atuação, como instruído por meu pai, tivesse que ser absolutamente discreta, pois como estrangeiro ele poderia ser visto como uma ameaça. Coisas da política que me eram difíceis de engolir: na aparência de um jeito, nos bastidores de outro!

Foi um tempo mais tranquilo do que eu havia imaginado. Sem crises, tive apenas que seguir a rotina do governo. “Saía de minha casa apenas uma vez por semana, para receber petições, escutar o que algumas pessoas tinham a me dizer, ou me reunir com os ministros.”
Durante essa minha primeira regência, que durou 1 ano e 2 meses, assinei a lei do Ventre Livre – não nasceriam mais escravos no país.

As criancinhas seriam livres.

Mas ah! as leis! As inocentes criancinhas nasceriam livres mas, se suas mães fossem escravas, na prática elas continuavam nas mãos dos escravagistas.

Escrever e promulgar uma lei é fácil, é só pegar na caneta. Aplicá-la e fazê-la de fato valer é que é verdadeiramente difícil.
A causa da abolição sempre me pareceu muito justa e tocava de perto meu coração de cristã. Se eu pudesse, teria alforriado todos os negros do país. Mas o governo não tinha dinheiro para pagar por eles. Comecei a participar da organização de um fundo de alforria e, no próprio Palácio, aproveitávamos todas as efemérides para alforriar os nossos.

E as notícias que apareciam nos jornais, meu Deus! (No painel, são projetadas fotos de escravos no pelourinho, com as máscaras de tortura, etc.) As torturas que eram feitas com os pobres escravos! Pareciam não ter alma esses grandes proprietários!

E em tudo isso, eu ainda era muito, como dizer, ingênua? Inocente e sem malícia? Ou talvez, pouco ambiciosa? O fato é que eu via as coisas de uma maneira muito tranquila: ninguém ameaçava meus direitos, eu era muito naturalmente a herdeira, só que, naquele momento, o Imperador ainda era o meu pai. Assim, tive dúvidas se não seria melhor esperar por ele para assinar a nova lei de tanta importância, mas ele foi incisivo quanto a isso, e a Condessa de Barral me escreveu uma carta que jamais esqueci. “Seu pai”, ela dizia, “nunca se mostrou mais seu amigo do que lhe dando a oportunidade de assinar essa lei. Com sua assinatura, você ligará seu nome a esse grande evento, e foi glorioso ele ter renunciado a isso em seu favor.”

Era verdade. Meu pai parecia querer que eu crescesse como governante, que mostrasse meus talentos, mas eu mesma não via a hora de poder voltar a minha vida normal. Despachos, audiências públicas, tudo isso me pesava demasiado. Eu ainda era muito jovem!

Durante esse período houve outro acontecimento muito importante para o Brasil e que me fez perder noites de sono: a Revolta do Quebra Quilo. Outro problema da aplicação de uma lei, essa promulgada dez anos antes. Por ela, todo o país devia adotar o sistema métrico decimal, mas isso não havia acontecido. Então, quando assumi como regente, e o Visconde do Rio Branco propôs que cuidássemos disso de uma vez, aceitei. Mas quem disse que é fácil mudar a mentalidade de um povo?!

Várias cidades da Paraíba e Alagoas, sobretudo, não quiseram aceitar as novas medidas. Queriam continuar com as antigas, com as quais estavam acostumados desde muitas gerações: palmos, jardas, polegadas, braças, feixes, onças, e inúmeras outras. Os revoltosos saíam quebrando as novas “medidas” e jogando os pesos dentro de poços e açudes. Por que tudo isso? eu perguntava. “Um povo rude”, me respondiam, “um povo ignorante”, “um povo que não entende o que é melhor para ele”. O que não me diziam é que havia cobrança de taxas para o aluguel e aferição dos novos padrões – balanças, pesos e vasilha de medidas. A nova lei proibia os antigos padrões, mas seus substitutos deveriam ser alugados ou comprados na Câmara Municipal, por um preço que nunca é barato para quem mais precisa deles. E como se sabe, essas coisas acontecem em cadeia: os comerciantes acrescentavam ao preço das mercadorias o novo valor que tinham que pagar pelas medidas, o que encarecia os produtos para a população.

Além disso, certamente ainda outras razões para o descontentamento pois o número de revoltosos cresceu de forma acelerada. Fiquei muito preocupada e cheia de angústia. Foi preciso uma repressão enérgica, para evitar confritos mais sérios, e morreu muita gente! Em Campina Grande houve o que foi chamado de massacre! Que tristeza!
“Mal se pode crer que tenha corrido sangue em nosso país por coisa tão banal”, mas há fatos não menos absurdos em toda a nossa história, quando se pensa bem.

Por coisas assim é que eu não me sentia estimulada a exercer o poder.

Na última carta que escrevi a meu pai em Paris, pedindo perdão pela minha ousadia, porém, dei-lhe minha opinião sincera sobre o que eu achava que ele poderia melhorar para não ser criticado em seu poder pessoal. Disse-lhe que poderia mostrar mais confiança em seus ministros e dar-lhes mais autonomia em sua área. Disse-lhe também que ele era lento para premiar os bons serviços de amigos pessoais e rápido em premiar ou promover os que o criticavam publicamente.
Já tinha virado galhofa nos jornais os títulos de nobreza que ele gostava tanto de dar (ou de vender, era o que diziam). Até fazendeiros quase analfabetos viravam nobres, sem merecimento e sem os bons modos que se exigem da nobreza.

Tive também a ousadia de fazer ainda outra crítica a meu pai, quando fiquei sabendo que ele havia visitado George Sand, em Paris. Sei que ela é baronesa e dizem que escreve até bem, e seus salões são frequentados por artistas famosos, mas uma mulher que se veste de homem não me parece boa companhia para papai. Escrevi a ele: “Uma mulher de muito talento, é verdade, mas também tão imoral!” Um bom católico deveria saber evitar essas coisas.

(A atriz faz uma careta galhofeira: O que é isso, princesa? Perdeu a compostura!?! Papai não lhe deu umas palmadinhas depois?)

Quando meu pai voltou, estranhei uma atitude que depois seria a sua em todas as outras vezes que assumi o poder em seu lugar. Não me chamou para que eu lhe contasse como haviam sido aqueles meses. Era como se ele não tivesse passado todo aquele tempo fora. Reuniu-se com seu gabinete e de mim só quis saber sobre minha vida particular.
Perguntei-me várias vezes se não seria porque se decepcionara comigo, esperando de mim não só o cumprimento de suas instruções e sim mais iniciativa e interesse próprio. Gaston me dizia que era a natureza autoritária de meu pai e sua incapacidade de dividir o poder. No fundo, preferi achar que era por perceber meu cansaço e desprazer com tanta responsabilidade e querer me aliviar imediatamente de minha carga tão pesada.

Felizmente, sempre foi do meu feitio aceitar as coisas como elas se apresentavam. “Nunca tive a tendência de ver o mundo inteiramente negro. Pode ser um hábito bom ou ruim, mas de qualquer maneira é muito afortunado para mim, e sempre será uma parte minha.”
Gosto de ver o lado bom da vida. E estava com minha consciência tranquila: o que eu quis dizer para meu pai sobre o assunto, eu tinha dito na última carta que lhe enviei como regente. Jamais tive medo de dizer o que penso nem a ele, nem a ninguém, e sempre fui firme em minhas posições.

(A atriz projeta outra foto.)

E a vida passava como sói passar. Eu e meu Gaston amadurecíamos. Meu pai envelhecia.

A única coisa que me entristecia era minha incapacidade de ter filhos. Minha primeira gravidez foi abortada, e na segunda, depois de cinquenta horas de dores horríveis, dei à luz uma nenê perfeita e linda, mas morta por asfixia!
Ah!, como foi doloroso! Minha linda menininha, de cachos louros, morta em meus braços.
Só na religião encontrei consolo nesse momento.

(Canta uma parte de um hino religioso)

Comecei a passar dias inteiros na igreja onde me mantinha ocupada. Gostava de arrumar o altar, enfeitar a igreja e cantar as vésperas. Foi nesse momento, também, que decidi construir um a nova igreja em Petrópolis, uma tarefa a que dediquei muitos anos de minha vida.
Como poderia imaginar que, em um país católico, minha devoção causaria tantos problemas! As charges que publicavam nos jornais, zombando de minha fé! Porque me viram uma vez de vassoura em punho, lavando o piso da igreja com minhas criadas, fui ridicularizada em caricaturas.

(A atriz coloca a charge da Princesa varrendo a Igreja.)

Houve, então, a Questão Religiosa, um problema político de grande importância na época, e que foi muito usado contra mim. Em suas desavenças com os maçons, dois bispos pretenderam se imiscuir em questões do Estado, e acabaram sendo presos, quem poderia imaginar! Uma situação terrível. Apesar do meu silêncio e reserva quanto a isso, os jornais me atacaram muito, como se, por minha grande devoção, eu personificasse o atraso frente à necessidade de modernização do país. Injustamente. Eu tinha minha posição de apoio à igreja católica, é verdade, e a disse a meu pai, mas era ele o Imperador e era ele quem decidia.

Além disso, durante toda essa época, não estive bem de saúde e passei por uma grande depressão. Minha maior preocupação e ansiedade estavam voltadas para meu grande desejo de ter um filho, e a tristeza de ter perdido nossa primeira filhinha.

Quando me engravidei novamente, senti um pânico terrível de que isso pudesse acontecer outra vez. Insisti para Gaston mandar buscar meu médico de Paris, em que eu confiava muito, o que provocou outra perseguição dos jornais em uma polêmica odiosa: acusaram-me de ofender a competência dos médicos brasileiros. Como se uma mulher não tivesse o direito de fazer tudo a seu alcance para garantir a saúde de um filho! Que nasceu, para nossa grande felicidade, depois de 11 anos de casamento!

(A atriz projeta a foto do casal com o primeiro filho. Vai até o cabide e pega uma blusa para compor com a saia da princesa.)

Pouco depois, assumi minha Segunda Regência. Foi também motivada por uma prolongada viagem de meus pais aos Estados Unidos e Europa, e foi um período mais atribulado do que o da 1ª. Regência.
O país estava em um momento de pessimismo, e o gabinete optou pela inércia. Tive que enfrentar três crises nesse período – o fiasco da reforma eleitoral, uma nova onda da Questão Religiosa (parecia uma provação que me acompanhava), e a Grande Seca de 1877.

Os horrores da Grande Seca me tocavam profundamente e organizei bazares, concertos, espetáculos teatrais para angariar fundos. Lamentavelmente, tudo era considerado incompetência do regime imperial.

Chegavam notícias de que os camponeses expulsos pela seca estavam indo para a Amazônia. Aquela selva! Aquele desconhecido mundo verde! Iam trabalhar em seringais, e os jornais diziam que eram tratados como escravos. O que eu poderia ter feito, meu Deus!? Pelo menos lá havia água e ninguém morreria de sede.

Durante esse período, fui muito criticada e admito que não estava preparada para enfrentar tantos problemas. Caricaturas, diatribes, “acusações de sacrificar a dignidade do país às minhas crenças religiosas.” Era a tecla em que gostavam de bater.

Eu tinha 30 anos, já era mãe e tive outra gravidez abortada, acompanhada de dores intensas e hemorragia.

Sinceramente, eu me considerava apenas uma substituta do meu pai para manter as rédeas da carruagem enquanto ele estivesse fora. O que eu mais desejava era que ele retornasse o quanto antes para que eu também pudesse voltar a me dedicar completamente a meu precioso filho e meu amado esposo. Não era uma mulher ambiciosa. Por essa época, o que eu sentia era que meu lugar não era a política, era o meu lar. Estava disposta a cumprir meu dever como herdeira, mas sabia que minha felicidade não estava ali. Estava junto com Gaston e meus filhos.

Além disso, não éramos populares.

Os brasileiros chamavam Gaston de “o Francês” ou de surdo, e jamais o aceitaram como homem público. Acusavam-no de falcatruas e corrupção. Tantas críticas e caricaturas e polêmicas nos deprimiam amargamente e optamos por nos restringir a nossa vida privada, fazendo socialmente apenas o que era estritamente necessário a nossa posição, da qual meu senso de dever jamais me afastou.

Foi uma época em que Gaston, também, sofreu muito, o stress atacando-lhe os nervos e os brônquios. E mesmo assim, a opinião pública nos culpava por todos os problemas que o país por sua imensidão e dificuldades apresentava. As forças republicanas faziam um barulho tremendo e eu e Gaston éramos os bodes-expiatórios.
Graças ao bom Deus, depois de 18 meses, meu pai voltou antes do nascimento de Luís, nosso querido segundo filho.

Quando ele voltou, foi, outra vez, como se eu nunca estivesse estado à frente do governo do país. Agiu exatamente como tinha agido da primeira vez. Nada me perguntou sobre os negócios de Estado; passou direto a discutir com seus ministros. Gaston sentia muita mágoa com essa indiferença para conosco e nossas opiniões políticas. Eu, porém, por mais que também não compreendesse esse seu comportamento, tentava desculpá-lo e ver o lado bom disso, como era do meu feito: achava que assim ele me aliviava de toda essa carga política que sempre me trazia problemas.

Quase como uma compensação, obtivemos permissão para residir na Europa por dois anos, depois ampliado para três e meio.

O Brasil era meu país, e eu o amava, mas também amava a vida na Europa! Longe dos ataques da imprensa e das pesadas responsabilidades políticas!
Lá nasceu Antonio, meu terceiro filho, em um parto, dessa vez, normal!

(A atriz projeta a foto do casal com os três filhos.)

Quando regressamos ao Brasil, fomos viver em Petrópolis. A saúde do meu pai começava a declinar com uma diabete, e os olhos dos opositores republicanos mais uma vez se fixaram em mim, como herdeira do trono. Criticavam sobretudo o que chamavam de meu “excesso de religiosidade”.

Eu me apoiava em Gaston. É claro que, como todo casal, às vezes discutíamos por alguma miudeza. Lendo seu diário, uma vez, achei que ele havia se expressado mal e quis apagar o que ele havia escrito, quando, chateado, ele pegou o diário da minha mão e rasgou as páginas.

(A atriz ri: Você bem que tinha seu lado de mandona, hein? Não se nasce princesa impunemente!)

Boa parte dos meus dias era dedicada à música que sempre amei tanto. Tinha minhas aulas de violino e piano, e de canto. Óperas e concerto e as vésperas eram as poucas coisas que nos faziam, a mim e a Gaston, sair com gosto de casa. Também os eventos de horticultura e minhas atividades de caridade. A essas, eu ia acompanhada de minhas amigas, poucas mas queridas.

E o movimento abolicionista só fazia crescer. Os escravos e seus defensores, como José do Patrocínio, Luiz Gama, todos sabiam que tinham meu apoio. E eram tantas as notícias de fuga, de formação de novos quilombos, de escravos enfrentando seus odiosos patrões.
Já nessa época, eu recebia todos os dias um cesto de camélias do quilombo do Leblon.

(A princesa vai até o vaso de camélias brancas, tira uma camélia, cheira-a, coloca na blusa.)

Como são lindas essas camélias! Passei a usá-las em minhas saídas públicas, como um símbolo do meu desejo de ver os escravos libertados.

(Depois, enquanto canta uma canção religiosa a atriz vai até o cabide e pega uma peruca com os cabelos da princesa.)

Com o agravamento das doenças do meu pai, ele partiu para um tratamento mais adequado na Europa. Foi a minha terceira regência, e eu tinha 41 anos.

Sem dúvida, eu estava mais preparada. A causa abolicionista avançava no país e a cada vez eu me convencia mais de sua imediata necessidade. Era preciso livrar o Brasil dessa mancha infame! Ser um dos últimos países do mundo a ainda ter escravos era uma vergonha para todos os brasileiros

Como a causa dos escravos foi capaz de me convencer tão profundamente? “O conceito, já inato dentro de mim, era intrinsicamente humanitário, moral, generoso, grandioso e apoiado pela Igreja.” Eu me interessava por ler tudo o que era publicado a respeito, e minha impaciência crescia. As ruas gritavam por isso, o coração da nação latejava de vergonha!

(Fotos de manifestações da época são projetadas no painel.)

Foi essa a causa que realmente me ligou às questões políticas e me fez pressionar o gabinete para que ações fossem tomadas.

Foi o momento em que de fato me vi governando.

A nação queria a abolição imediata da escravidão e compreendi que estava em minhas mãos fazer isso. Dentro de minhas possibilidades, enfrentei o Barão de Cotegipe e nomeei outro gabinete favorável à libertação dos escravos. Assim, quando a nova sessão legislativa abriu em maio de 1888, no dia 13, desci direto de Petrópolis para o Palácio, para receber os deputados que me traziam a lei para assinar.

Foi o dia mais feliz da minha vida.

(No painel, são projetadas fotos das comemorações nas ruas.)

Que beleza ver a euforia do povo comemorando na rua por três dias. Foram os negros quem me deram o precioso apelido de A Redentora.
Minha popularidade começou a mudar. E eu, pela primeira vez, comecei a gostar de ter o poder de fazer o que achava certo fazer. Comecei a pensar que, afinal, quando chegasse o dia – mas que meu pai ainda vivesse muitos anos, Deus Louvado! – quando chegasse o dia eu assumiria com prazer e honra meu dever de governar o país. Havia tanto a ser feito! Queria, por exemplo, “me dedicar a libertar as mulheres do cativeiro doméstico”, e que elas pudessem votar. “Se a mulher pode reinar, também pode votar.” E queria muito poder indenizar os ex-escravos com terras improdutivas para que pudessem se estabelecer como agricultores – e sabia o quanto certas gentes iriam me difamar por conta disso!

(A atriz: Um tipo de reforma agrária, querida princesa!? Você pensava realmente nisso? Sinto lhe dizer que não acredito muito, mas o país teria sido outro se isso tivesse de fato acontecido.)

A Abolição me trouxe o afeto do povo, mas trouxe também o rancor das elites. Os grandes fazendeiros (incoerentemente apoiados pelos republicanos nisso) iniciaram uma grande campanha para serem recompensados pelo Império por sua perda financeira. Com que dinheiro faríamos isso? E como se já não tivessem lucrado tanto tempo com a vida dos pobres escravos!

(A atriz, irônica: Que novidade, não? Os grandes querendo mais lucros para soltar a carne!)

Com a volta do meu pai, ainda enfermo, em agosto de 1888, para poupar sua saúde alguns ministros propuseram minha permanência na regência, enquanto ele ficaria como imperador honorário.
Fiquei aliviada quando ele sentiu que tinha a força para governar e remover essa grande responsabilidade de mim. Tanto por ele mesmo, quanto por mim. Ele ainda era o Imperador. E eu jamais, jamais, contestaria seu poder. E pude voltar a me dedicar a minha família e minhas atividades particulares.

(Atriz para o público: O que se pode dizer disso? Parece que era mesmo uma escolha dela. Não do pai nem do marido. A princesa herdeira parece que preferia ser uma mulher comum.)

Outra coisa aconteceu por essa época. O Papa Leão XIII, em reconhecimento a meu papel pelo término da escravidão, me agraciou com a Rosa Dourada, um presente tão raramente dado que uma cerimônia pública foi realizada para sua entrega. Ali, como católica devota, jurei minha obediência ao Papa.

(A atriz: Se conheço bem meu diretor, ele vai me perguntar: “O que você sabe sobre o papa Leão XIII?” E eu: “Nada”. “E sobre a medalha da Rosa Dourada”: “Nada. “Então vá pesquisar.” A atriz vai até seu laptop e procura lá e aparece no painel, e ela lê:)

Papa Leão XIII – Ficou famoso como o “papa das encíclicas sociais”. A mais conhecida, a Rerum Novarum, trata dos direitos e deveres do capital e trabalho. Essa encíclica marcou o início da sistematização do pensamento social católico, e contribuiu para o despertar de uma esquerda católica. Este documento também influenciou fortemente a criação do Corporativismo e da Democracia Cristã.

(A Atriz continua: Pôxa, que complexo! Esquerda católica, corporativismo e democracia cristã vindo dessa mesma fonte? Essa o diretor vai ter que explicar melhor. E antes que ele me pergunte se eu sei quem foi Leão XIII, já vou perguntar pra ele quais os pontos comuns entre essas três consequências da encíclica papal. (Ela ri). A turma vai adorar! E aqui está a explicação da medalha:

O Papa Leão XII concedeu a Sua Alteza Imperial, a Princesa D. Isabel uma Rosa de Ouro, símbolo de generosidade por esta ter publicado a Lei Áurea, lei que extinguiu a escravidão no Brasil.
NOSSA, veja isso! Um pedido de beatificação da princesa Isabel!! Feito recentemente por partidários da volta da monarquia!

(A atriz projeta a notícia no painel:

Pedida a beatificação da princesa Isabel
O arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Orani Tempesta, acaba de receber o pedido formal de abertura do processo de bem-aventurança e beatificação da princesa Isabel junto ao Vaticano.
No texto feito por simpatizantes da volta da monarquia, a justificativa é a assinatura da Lei Áurea, de 1888, e as dificuldades que ela teria passado no exílio depois da Proclamação da República, 1889.
Os requisitos para que o Papa beatifique uma pessoa são basicamente três: provas de virtude em grau heróico, santidade popular e um milagre. A igreja, portanto, formará uma comissão para investigar testemunhos de pessoas que dizem ter sido curadas por orações feita à filha de d. Pedro II, reivindicação antiga de grupos pró-monarquia.

(A atriz projeta o começo do pedido, se levanta e olha o painel por um momento, comenta: Que loucura o que ainda fazem no nome da princesa! Depois se levanta e continua como princesa: )

O problema foi eu ter jurado obediência ao Papa. Esse juramento provocou outra onda de difamações. Como Princesa herdeira, diziam, eu não poderia me colocar em posição subalterna ao Papa! Eles consideravam a minha fé uma união demasiado estreita entre a Igreja e o Estado.

Outra vez aquela história: por dentro, escondido, pode; por fora, não.

E vejam como eram os opositores e imprensa da época: na minha Terceira Regência, me preocupei muito com a educação para ambos os sexos, propus a criação de escolas e o preparo dos mestres. Propus também que um crucifixo fosse pendurado nas salas de aula. Pois só do crucifixo eles se lembraram, e foi isso que levantaram contra mim.
(A atriz não consegue deixar de comentar outra vez, sarcástica: Que coisa, não?! Como eles faziam isso?!)

Chamavam-me de beata, de fanática. Atacavam também meu amado Gaston: voltando a chama-lo de “francês”, de “surdo” e publicavam todo gênero de difamação. Até de “feio” e “antipático” o chamaram.
Embora não percebêssemos, a Monarquia estava chegando ao fim.
Mas antes, antes do fim, teve o baile. Ah, nosso último baile. O deslumbrante Baile da Ilha Fiscal.

(Como Isabel adorava dançar, devia dançar bem. A atriz dança uma valsa como se estivesse nos braços de Gaston.)

O baile foi uma homenagem aos oficiais dos navios chilenos ancorados na Baía da Guanabara. Mas comemorou também as bodas de prata do meu casamento com o conde d´Eu. O visconde de Ouro Preto, presidente do conselho de ministros, queria tornar esse baile inesquecível, uma demonstração de riqueza e tranquilidade marcando a solidez do Império contra as conspirações republicanas.

Toda a sociedade carioca estava presente. O belo palacete neogótico e a pequena ilha foram iluminados com balões venezianos, lanternas chinesas, e enfeitados com vasos franceses e flores brasileiras. Os convidados desciam das barcas a vapor e eram recepcionados por moças fantasiadas de fadas e sereias.

Depois, os jornais (sempre essa famigerada imprensa republicana estragando a festa) disseram que o dinheiro gasto foi retirado do ministério da Viação e Obras Públicas, e estaria destinado a socorrer flagelados da seca no Ceará.

E ainda inventaram que meu pai, ao entrar no salão, desequilibrou-se e foi amparado por dois jornalistas, aos quais ele, com espírito, teria comentado: “O monarca escorregou, mas a monarquia não caiu!”

(No painel aparece fotos do baile e, se der, esses dizeres:
Nas duas mesas montadas em formato de ferradura, foram consumidos:
800 kg de camarão
1.300 frangos
500 perus
64 faisões
1.200 latas de aspargos
20.000 sanduíches
14.000 sorvetes
2.900 pratos de doces
10.000 litros de cerveja
304 caixas de vinhos, champagne e bebidas diversas.)

Os republicanos, evidentemente, perderam o baile. O tenente-coronel Benjamin Constant, por exemplo, preferiu ficar conspirando no Clube Militar.

Sabíamos das conspirações, mas nada nos fez prever o que se aproximava.

A Proclamação da República, pelo Marechal Deodoro, seis dias depois do baile, nos pegou a todos de surpresa. E eu, mesmo não sendo a Imperatriz, senti que usurpavam nossos direitos, e davam uma punhalada no meu pai. Usurpavam os direitos dos meus filhos. Tiravam de mim meu país e meu povo.

É impossível dizer o quanto sofremos naqueles dias quando as tropas cercaram nosso palácio e depois nos embarcaram para o exílio.

Doeu-me profundamente no coração essa rejeição do meu país.
Algumas pessoas acham que fui fraca nesses momentos de crise. E acreditam que isso se deu porque sou mulher. Não creio que seja verdade. Meu pai sempre me tratou como herdeira e me deu a educação que daria a um filho. Educação entendida em seu sentido mais restrito, é verdade, como transferência de conhecimento abstrato, sem uma preparação prática para futura governante. Mas, a sua maneira, ele me tinha como capaz de governar o país, como provou ao me deixar três vezes como regente.

(Cantarola uma parte de uma música triste, como se estivesse em um navio que se afasta. Talvez um trecho de Carlos Gomes.)

Daqueles dias tão tristes, uma das lembranças que tenho de papai em seu último dia como imperador, foi ele dizendo como estava preocupado com Carlos Gomes, que não tinha dinheiro para produzir sua grandiosa ópera “Lo Schiavo”. Pretendia financiá-la com dinheiro do governo. “Repare, senhor, são só 40 contos!”, ele disse ao Visconde Taunay. Maravilhoso Carlos Gomes! Não sei se a República o financiou. Provavelmente, não. Aqueles militares tão sem cultura certamente, não frequentavam óperas!

(Continua cantarolando outra parte da música)

Fui para o exílio europeu com 43 anos, e nunca mais voltei ao meu amado Brasil. Nunca mais vi sua exuberância, sua paisagem, nunca mais vi meus jardins e minhas plantas!
“Não se pode ser inteiramente feliz nesse mundo! Meus tempos verdadeiramente bons ficavam para trás. O país da minha mais verdadeira afeição saiu de minha vida!”

Já me perguntei algumas vezes o que teria acontecido se eu fosse uma pessoa voltada para o poder.

Hoje penso que naqueles períodos de regência meu pai estava testando não só minha capacidade como também meu interesse. Se no final da minha 3ª. Regência, eu tivesse desejado exercer o governo do país em meu próprio nome, eu o teria feito. Mas colocar acima de qualquer outro o desejo de servir ao país exige uma dedicação e uma abnegação que eu ainda não tinha. Admiro quem as têm porque servir a um povo é uma glória sem preço, como pude compreender no momento da Abolição.
Mulher ou homem, porém, as pessoas nascem com sua natureza própria e suas tendências. Saber reconhecê-las e poder, como eu pude, viver de acordo com elas é a única garantia de ter momentos de felicidade na vida, como tive os meus.

Mas me pergunto também se tudo isso não teria a ver com a sabedoria que nos traz a idade. Se o Império tivesse prosseguido, e se eu tivesse de fato sido Imperatriz, já por volta dos meus 50 anos, creio que então encontraria em mim forças e paixão para me dedicar com alegria à missão para a qual havia nascido.

Como fiz no único momento em que de fato tive o poder em minhas mãos, e o exerci. E com todo meu interesse e paixão. Para a felicidade do meu povo, eu pude abolir a mancha da escravidão do país, e a aboli.

E hoje, quando me dizem que a Abolição foi uma das causas da queda do Império, eu digo que “não me arrependo. Considero que foi digno ter perdido o trono por ela.”

(Uma batucada leve começa no fundo)

E sabem o que mais?

“O que realmente me admirava era que os escravos já não tivessem fugido todos!”

(A atriz vai tirando a roupa de princesa enquanto a batucada entra. Por baixo, ela está com sua roupa branca do começo que logo se torna um tipo de roupa de baiana de carnaval e ela começa a dançar junto com a escola de samba que canta a marchinha da Princesa Isabel.
A cortina abaixa com o carnaval no palco.)

Fim

…….

FRANCISCA

Maria José Silveira

“Francisca foi um membro do mais desprezado, desumanizado, e menos vigoroso grupo humano que existiu na América colonial – os índios escravizados. A inteligência, a engenhosidade, vitalidade, determinação, e amor pela vida que mobilizavam pessoas como ela, são poucas vezes reconhecidos (pelo menos em escritos), mesmo por seus contemporâneos. As pessoas como Francisca viviam pouco, eram vergonhosamente exploradas, e rapidamente esquecidas. Francisca foi uma sobrevivente, uma mulher que deixou sua marca na vida de várias pessoas e conseguiu, em alguma medida, conduzir sua própria vida. O resultado é que hoje podemos saber seu nome, e imaginar que tipo de ser humano ela deve realmente ter sido.”
David G. Sweet

(Ao lado de uma fogueira no quintal de uma casa na cidade de Belém. no ano de 1739, Francisca mexe nas brasas e cantarola baixinho. É uma canção indígena melancólica, mas de ritmo bem marcado, lembrando o bater das remadas de uma canoa. Francisca é uma mulher índia, forte, de 40 anos bem vividos. É escrava e está vestida como branca. Ela termina a canção.)

Sempre que alguma coisa de muito ruim me acontece, esse canto me vem à cabeça. Não é um canto do meu povo; é dos remadores da grande canoa que me trouxe até aqui. Canto de esconjurar sofrimento. De dar consolo e a esperança de chegar a algum lugar. Seja lá onde for.
Se Angélico estivesse agora aqui comigo, eu ensinava pra ele. Angélico ficou muito amargurado hoje. É jovem demais, ele. Jovem demais pra saber que muitas vezes o que parece derrota pode ser outra coisa. Essa tarde, quando o Conselho das Missões me mandou voltar como escrava pra dona Ana e continuar obedecendo suas ordens, não vou negar que senti o faiscar daquela fúria imensa tão minha conhecida, mas já passou. A faísca sempre passa. Eu faço passar. Tive que aprender a fazer passar. Mas a brasa não, essa fica fazendo parte da tristeza, e é ela que não deixo apagar e vou atiçando devagar e deixando pronta. Deixando pronta.

(pausa)

Desde o começo, eu sabia que a idéia de Angélico de peticionar na justiça a minha liberdade era muito boa, mas muito difícil de acontecer. Minha escravidão foi ilegal? Foi. A escravidão ilegal não é permitida pela justiça? Não. Então, era só provar que eu era livre e que o capitão Anacleto Ferreira não tinha o direito de me dar como pagamento de sua dívida com Dona Ana. Mas quem não sabe que a justiça dos brancos serve pros brancos, e não pra pros índios? Angélico parece que não sabia. Homem livre que é, com seu bom ofício de alfaiate, nunca teve de se ver com ela. Mas eu, sim, eu sabia. Estava cansada de saber. E mesmo assim resolvi ir em frente e mover a ação. Por que tem outra coisa que eu também sei. Que no rio da nossa vida, seja ele tumultuado ou manso, nunca se deve parar de remar. Nunca. Nasci livre, e quero voltar a ser livre. Tudo que eu puder fazer para ser de novo livre vou fazer.

(Retoma um trecho da canção. Suspira.)

Índia velha foi o que ele disseram que eu sou lá na audiência. Índia velha, eu? Que devo ter quarenta anos, foi o cálculo deles. Aqueles senhores brancos, que nem sabem quem sou, nem quem foram meus pais e nem meu nome verdadeiro, meu nome de índia, esse nome que nenhum branco jamais vai saber, nem Angélico, eles calcularam que eu devo ter nascido, disseram, entre 1700 e 1705 já que eu era moça feita em 1718, “mocetona”, quando a expedição dos dois Anacletos me trouxe aqui pra cidade de Belém. Índia com 40 anos já devia estar morta há muito tempo, um deles comentou, erguendo os olhos pra mim. “Tu é uma índia de sorte”, outro falou. “Ou afeita a bruxarias”, disse o primeiro, dessa vez de banda, evitando me olhar. “E não é que ainda tem homem!”, disse um terceiro, me olhando de alto a baixo, com aquela cara e voz que conheço não é de hoje. Ainda bem que Angélico não estava lá nessa hora. Ele não é esquentado, mas gosta das coisas certas, bem feitas, corretas, e não iria gostar nada desse comentário dos senhores que estavam ali para julgar minha petição e não meu corpo nem minha idade.
Angélico, meu nêgo, jovem e livre e respeitador das leis.
Que se enrabichou por mim. Que deita comigo na rede e quer que eu fique lá, morando na casa dele. Que diz que eu tenho cheiro de floresta verde e de água pura. E eu lhe digo, “É o cheiro do meu vale. O cheiro do meu rio.” E a gente ri, e brinca na rede até o comecinho do raiar do dia quando então tenho de voltar apressada pra minha rede aqui da casa da Dona Ana, pra que ninguém dê por minha falta. E ninguém nunca notou nada.
Índia velha, eu?
Quem sabe se você tá velha é você mesmo.

(pausa)

O cheiro do meu rio, do meu vale.
O grande Rio Negro que eles aqui chamam de “rio da fome”. E tem verdade nisso; meu grande rio, meu rio de águas escuras por fora mas transparentes por dentro, é rio de belezas mas não de fartura. É grande, é bonito, é bom pra se banhar, mas não é bom de comida! Nunca foi como o outro, o Solimões, de terra boa nas margens, pronta para fazer brotar o que plantarem. No meu rio Negro, não. Suas margens não acumulam nada daquela lama que quando seca fica boa pro plantio. Pelo contrário, o rio vai é levando a pouca terra boa que resta nas margens.
Mas foi lá que eu nasci e foi lá que vivi com minha família, meu povo manau. Dormindo na rede cheirosa no meio das redes da nossa grande cabana redonda e fresca, cobertas de folhas de palmeira. Comendo mandioca e peixe fresco, quando tinha. Tomando banho na água transparente, minha pele arrepiada se secando ao sol e no perfume de folhas verdes e flor vindo da floresta, perfume da terra. Minha lembrança põe de novo na minha cabeça essas gostosuras todas, e também a cara de todos os meus parentes, de cada um deles. Cara, cheiro, jeito de falar e de rir de cada um deles. Minha lembrança não me deixa esquecer nada porque essa foi minha vida, essa fui eu. Fui enrolada na rede pintada de vermelho da iniciação, e me fizeram minhas tatuagens de mulher. E fui pra minha primeira festa da primeira lua cheia de março e com que prazer me juntei às mulheres e cruzei meus braços sobre os seios para receber as chicotadas da cerimônia e demonstrar minha capacidade de suportar dor. Não deixei nenhuma lágrima cair; todas ficaram presas nos meus olhos, como devia ser, para que eles ficassem mais brilhantes, mais experientes, mais capazes de ver. E depois, com que alegria comi da mandioca e do peixe defumado preparados especialmente para a festa. Com que alegria dancei e dancei, e ri e ri.

(Pega o amuleto que carrega em um cordão em volta do pescoço)

Minha lembrança me faz ver meu pai, tuxaua Amu, colocar em volta do meu pescoço esse amuleto de garra de gavião. “Pra te proteger dos demônios da floresta e do rio”, ele disse. “E dos demônios brancos”, devia ter dito também, pois foi esse amuleto que me protegeu, e me fez sobreviver e chegar até aqui.
O amuleto do meu povo, senhores do Rio Negro.
Sim, os manau foram um dia os senhores do Rio Negro. Eram guerreiros, temidos, poderosos. Nunca cheguei a ver com meus próprios olhos, pois a nossa ilha naquele momento não vivia em guerra, mas eu sabia como os guerreiros manau se preparavam para as batalhas, como arrancavam todo o cabelo das cabeças para não dar ao inimigo a chance de puxá-los. Pintavam de preto a testa toda até as orelhas pra causar terror no coração de quem os visse chegando para atacar. Só que não foi isso que aconteceu no coração dos brancos. Que esses, quando chegaram, chegaram de mansinho. Chegaram de canoa como se fossem amigos, querendo só fazer trocas. Trazendo suas mil coisas e querendo de nós as drogas do sertão, o cacau, a baunilha, a salsaparrilha. E querendo escravos. Mais e mais escravos. Cada vez mais escravos. Não paravam de querer mais e mais escravos. Os inimigos que eram escravizados nas guerras não davam conta da precisão dos brancos, que é uma precisão que não acaba nunca. As casas deles, as plantações, tudo que o branco tem precisa do braço do índio para existir. Jamais consegui entender. Por que os brancos não conseguem viver sem nós? Não conseguem viver sem nós, mas não nos tratam bem. Precisam de nós, mas ficam o tempo todo fazendo de tudo para gente morrer logo. Quando os índios chegam na terra dos brancos é como se fossem colocados num pilão, como formigas. Não sei se os homens e mulheres brancos suportam o cativeiro, mas os homens e mulheres índios não suportam. Não conseguem trabalhar forçados. Ficam tristes. Ficam doentes. Não conseguem ter filhos. E morrem como formigas que os brancos vão amassando no pilão.
E lá voltam eles pro vale do Rio Negro querendo mais..
Todo ano, as grandes canoas com índios escravos remando – que branco não sabe remar -, chegam no vale do meu rio, querendo o que a gente tem, e querendo nossos braços. Compram, seqüestram, fazem o diabo. E claro que os nossos guerreiros agora se armam pra defender as aldeias. E dizem que por lá agora o tempo virou de guerra. Sem parar. Já não tem mais tempo de guerra e tempo de paz. É tudo tempo de guerra. De morte e de sangue. De gritos, gemidos e tristeza.
(pausa)

É difícil entender os brancos. Foi o que repeti mais de uma vez quando Angélico me contou que existia essa lei que os brancos fizeram. Uma lei que diz que a expedição que vai buscar escravos não pode trazer índio à força. Não pode sequestrar nem nada. Só pode trazer os que são prisioneiros das tribos amigas. E cada expedição tem que levar um capelão jesuíta para dar atestado disso. Só pode trazer os que esse jesuíta confirmar que é índio-prisioneiro das guerras tribais e que, assim, passa a ser um escravo legítimo, um escravo dentro da lei.
“Nunca vi isso”, eu disse
“Mas existe, sim, essa lei”, Angélico me explicou. “Todo escravo índio tem que ter esse papel certificando que ele era prisioneiro. E esse papel tem que ser assinado pelo jesuíta da expedição.”
“Nunca vi.”
“O índio que não tiver esse certificado, não pode ficar escravizado. É livre. Você tem o certificado? Não tem. Então você não pode ser escrava, é ilegal. É o que manda a lei.”
“Nunca vi.”
“Você nunca viu, nem ninguém. Por que essa lei não é respeitada. Mas é lei. E o que a gente tem que fazer é mostrar pra todo mundo que ela existe e tem de valer.”
E foi assim que ele me convenceu a entrar com a ação requerendo minha liberdade. Me levou ao senhor Defensor Público dos Índios. E ele me pediu pra contar minha história. E contei.

(pausa)

Na colheita do cacau, do ano de 1717 (sei do ano porque depois ele foi consultar e me disse), um capitão de canoa, de nome Anacleto Ferreira, chegou na nossa ilha de Timoni, para negociar com meu pai, o tuxaua Amu. Junto com ele havia outro capitão, de nome também Anacleto, e de sobrenome Rayol.
Meu pai Amu ficou aliviado porque o ano tinha sido muito ruim, nossa tribo estava passando necessidade, e o capitão tinha mercadorias boas de troca. Como um gesto de amizade, ele deu ao capitão Anacleto Rayol a minha meia-irmã Rosaura em casamento. Rosaura era novinha, mal tinha sido iniciada, e tinha pouca vivência, mas o capitão estava interessado era nela. Com muito medo de ir só, ela pediu a nosso pai e ele, então, me deu também pro capitão, como acompanhante da minha irmã, por que eu era mais velha e experiente, e forte. Era pra gente ficar junto, pra uma ajudar a outra, pra uma ter a outra com quem conversar sobre as coisas novas. E pra rir juntas – o homem branco não ri muito, mas o homem índio não vive se não ri.
Naquela hora não me importei de ir. Até gostei porque eu queria ver o que tinha na terra dos brancos, não porque gostasse deles, mas porque achava que, assim como eles conheciam a nossa terra, era certo conhecer também a terra deles. Era também um tipo de troca.
Fomos numa canoa grande, como eu nunca tinha visto. Escravos índios remando o dia todo. Eu e Rosaura, a gente ficava ali, as duas sentadas bem perto uma da outra, e eu via o sol brilhando no suor das costas dos remadores o dia inteiro, o dia inteiro curvados, sem descanso. Gotas de suor deslizando e caindo no fundo da canoa. E na hora da comida, davam pra eles um pouco de farinha de mandioca e peixe salgado. Foi aí que comecei a ver como era o branco e como o branco tratava o índio. Os remadores quase não falavam, mas ficavam cantando juntos. Essa canção que desde aí sempre vem à minha cabeça nas horas de mais tristeza. A canção que acompanhava o ritmo das remadas e parecia tirar deles mais força, mais consolo. Também um pouco de esperança. A gente canta quando ainda acredita em alguma coisa. Se deixa de acreditar, não canta mais.
Na grande canoa vieram também os índios escravizados que eles foram buscar. Esses ficavam amarrados para não fugir. Os mais fortes ficavam com os braços amarrados em um tronco estendido nas costas. Comiam ainda menos que os remadores. E ficavam também esturricando ao sol e depois sofrendo o frio da noite. Na longa viagem do Rio Negro ao Pará, muitos adoeceram e morreram. Os mais doentes ficaram abandonados nas praias e os mortos eram jogados no rio – comida pros jacarés e urubus.

(pausa)

Eu e Rosaura, nós duas, sobrevivemos. Mas não ficamos mais juntas.
No fim da viagem, o capitão Anacleto Rayol achou de me separar dela, e me vender para o capitão Anacleto Ferreira. E o capitão Anacleto, quando chegamos à Belém, me deu para Dona Ana da Fonte, em pagamento parcial pelas mercadorias que Dona Ana tinha dado pra expedição. Minha lembrança também não me deixa esquecer a lista das mercadorias que estava no recibo que ela leu em voz alta quando me recebeu. Eram: 4 sacos de contas de vidro brancas, dois sacos de azul, doze libras de tabaco, doze libras de açúcar, duas dúzias de peças de louça, duas dúzias de facas de caça, e seis travas de mosquetes.
Junto comigo, o capitão entregou para Dona Ana uma carga de cacau e mais dois índios escravos. Ela vendeu os dois e me botou pra trabalhar na casa. Já completou vinte anos que estou aqui. Dou conta da cozinha, das roupas e das compras no mercado. Vida de muito trabalho e poucas risadas. Por qualquer coisa, até hoje ela me bate com uma vara que tem sempre à mão, e me belisca. Para Dona Ana, sou essa coisa que ela pode usar como quiser. No começo, o que ela mais fazia era puxar meus cabelos. É muito fácil puxar cabelo de índio. Por isso, nessa época, eu pensei nos guerreiros do meu povo e fiz como eles. Cortei meu cabelo bem no toco. Minha cabeça ficou feia de assustar, mas pelo menos ela não tinha mais por onde me agarrar. E fui sobrevivendo. Sobrevivi ate à epidemia de varíola que matou tanta gente e fez dessa cidade uma cidade morta. Durante aquele tempo, nas ruas só se via os penitentes nas procissões compridas, velas na mão, caras cobertas com panos, corpos murchos. Meus amigos morreram como peixes na seca, só que pior, com o corpo coberto de pústulas pestilentas, apodrecendo em vida. Os poucos que sobreviveram ficaram com o rosto desfigurado. Mas eu não tive nada. Meu amuleto me protegeu. Ou o pus dos doentes que o frade carmelita passou pra mim. Ele fez isso pra afastar a peste mas só fez conosco, os escravos. Pra mim, deu certo. Sobrevivi.
Foi tudo isso o que eu contei pro Senhor Defensor.

(pausa)

Agora, tem uma coisa. Se minha vida é dura, eu não a deixo ser mais dura do que é. Não deixo não. Faço o que posso. Aproveito tudo que dá pra aproveitar. Se não, seria como se estivesse morta, e morta eu num tô. E enquanto Dona Ana fica na janela vendo o movimento da rua, eu ando pela cidade, vou de lá para cá, respiro o ar lá de fora. Vou ao mercado, fico com as pessoas de quem gosto, rio o mais que eu posso, vou pra rede com Angélico, brincamos os dois. Dona Ana só sai pra ir à igreja. Não foi sequer ao julgamento da minha petição porque as senhoras brancas não fazem essas coisas. As senhoras brancas vivem sua vida e artimanhas por trás das portas e janelas de suas casas. Mas ela nem precisa mesmo sair. Tem eu pra sair pra ela.
E foi sem sair, foi na sala dessa sua casa, que ela arrumou os testemunhos falsos pra dizer as mentiras que disseram no tribunal.
Angélico disse que eu perdi a petição por causa dessas artimanhas dela e dos testemunhos falsos que arrumou.
Deve ter sido.
Sobretudo pelo testemunho falso do Clemente, Angélico disse, “Escravo como você, por que fez isso? Inveja?” Se fosse por inveja, ressentimento, ciúme ou até vingança, eu talvez compreendesse o que ele fez. Mas não foi por nada disso. Foi por puro desejo de ser capacho mesmo, de agradar Dona Ana, o motivo mais vil. Foi por isso que mentiu tão descaradamente. Disse que se lembrava do tempo quando um tuxaua tio seu me capturou mocinha de seus inimigos, e depois me passou para outro tuxaua que então me vendeu para a expedição de Anacleto Ferreira. Apesar de não ter nenhum documento que comprovasse essas mentiras que dizia, Clemente não teve pejo de jurar que eu era tão escrava quanto ele e o resto, e assim deveria ser tratada.
Disse isso e olhou pra mim com um risinho de mofa.
As outras testemunhas de Dona Ana eram três senhores brancos amigos dela, desses que são chamados de “cidadãos respeitáveis”. Todos afirmaram que sabiam que eu tinha sido trazida por Anacleto Ferreira como parte do pagamento do investimento feito por Dona Ana em sua expedição. Nenhuma dessas pessoas viu o que se passou na ilha de Timoní, e todas admitiram que essa informação lhes foi passada pela própria Dona Ana, amém.
Mesmo assim, nenhuma objeção foi levantada em relação à declaração de nenhum deles.
Já com as minhas testemunhas …
Meu Angelico – Angelico de Barros Gonçalves – alfaiate, dez anos mais novo do que eu, filho mestiço de um comandante da Fortaleza do Rio Negro. Angelico declarou a verdade que ouviu do próprio capitão Anacleto Rayol com quem conversou um dia no porto, e que lhe afirmou que eu tinha sido entregue a ele como mulher livre, acompanhante de sua esposa.
Mas esse seu testemunho teve pouco crédito porque foi considerado que ele falava por interesse próprio, para me levar como concubina pra sua casa.
Tampouco foi dado crédito a seu amigo, Manoel Dias, que declarou sob juramento ter escutado a mesma história da própria Rosaura. E Rosaura, índia livre, não foi chamada pra testemunhar. Disseram que seu testemunho não poderia ser considerado por ela ser parte da história.
Também as declarações de Ignácio Lisboa, português, foram desconsideradas porque ele era meu defensor, interessado apenas em seu pagamento.
E Apolinária, também índia livre, declarou que veio para Belém na mesma canoa que Rosaura e eu, na mesma expedição dos dois Anacletos. Era uma criança de dez anos e podia dar fé do que verdadeiramente acontecera. Mas tampouco seu testemunho foi aceito. Foi considerado que sendo ela de classe “pobre, infame e vil”, como eles dizem, e sendo além do mais prostituta, era uma pessoa capaz de vender seu testemunho por qualquer tostão.
Que a maioria das índias trabalha nos prostíbulos por conta de seus donos, como uma fonte de renda regular para suas “casas respeitáveis”, não foi levado em consideração.
Não importa.
Angélico, Manoel, Apolinária, Ignácio fizeram o que puderam por mim.
E verdade seja dita: se fosse só pelo chefe de justiça, eu teria conseguido minha libertação. Teve uma hora que ele disse que, como Dona Ana fora incapaz de apresentar meu certificado da escravização legal, e como fui trazida do sertão por uma expedição que só tinha licença para trazer cacau e não pra aquisição de escravos e sequer levava um capelão jesuíta, ele entendia que eu deveria ser uma índia ilegalmente escravizada. Mas os religiosos do Conselho das Missões, justo eles que têm a jurisdição final sobre os assuntos que diz respeito a nós índios, declararam que não. Pois não sendo confiáveis as testemunhas que apresentei, além do fato de que se fui dada como dote de Rosaura pelo tuxaua Amu, a quem chamo de pai por motivos tribais mas não por ser meu pai legítimo, isso significava com clareza que eu era vista como escrava por ele e, portanto, deveria continuar como escrava de Dona Ana, compensando-a pelo valor que gastara ao me comprar.
Foi o que mais me revoltou em tudo isso. Dizer que meu pai Amu me considerava escrava. Pois se é verdade que ele não é meu pai de sangue, mesmo assim pertenço à grande família dele e nunca fui tratada como escrava por ninguém de sua casa, e sim como uma deles, parente.
Mas são assim os homens brancos. Não sabem como vivemos, não falam a nossa língua, não conhecem nossos costumes. Para eles somos um corpo que trabalha, só isso e se sentem muito à vontade para dizerem qualquer coisa sobre nós.
Só que saber mesmo, não sabem nada.
A maior parte deles sequer fala a língua geral e mal falam com a gente. Só mesmo os que têm comércio conosco e os padres. Gente como Dona Ana e seus amigos, da língua geral só sabem as palavras que lhes interessam para dar suas ordens.
E da língua deles, do português, não ensinam nada pra nós.
Quando falei no português deles, causei um grande espanto na audiência. Um deles me perguntou: “E onde foi que você aprendeu a falar assim?”
“Me ensinaram”, respondi. “Quando alguém ensina, é fácil pro índio aprender. Índio fala muitas línguas. Fala a língua dele e a língua dos povos vizinhos que ele conhece, e a língua geral que falam na Capitania. Só não fala português porque ninguém ensina. Pra mim, a filha de Dona Ana me ensinou a falar na língua dela. Falava comigo, me ensinava e eu aprendi.”
Foi só isso que dei de explicação. Não contei, porque não era o caso de contar, que a pobrezinha tinha a saúde fraca e passava muito tempo na cama. Gostava de escutar minhas histórias e me ensinava o português pra que eu lhe contasse tudo direitinho, sem erro. Até ela se casar e se mudar, me ensinou muito e acho que só não me ensinou a ler e escrever porque também não sabia.
Mas índio falando português é coisa rara por aqui. E como não ensinam, acham que só falamos errado. E nem lhes passa pela cabeça o reverso: que, do mesmo jeito, nas raras vezes que algum deles tenta falar a nossa língua, ninguém entende, de tão errado que eles falam.

(Pausa)

Mas nada disso interessa ao homem branco.
O que vale pra eles não vale pros índios. Pra eles índio não é igual a eles, é outra coisa. Um tipo de bicho que sabe trabalhar.
E é para trabalhar e que estou aqui, de volta ao quintal da Dona Ana.
Mas outra vez digo, não importa. Fiz o que eu devia fazer, com ajuda do meu Angélico e meu pessoal. E mais farei, irei fazendo, sempre que puder. Irei remando, remando, e atiçando devagar minha brasa. Até um dia chegar livre outra vez em algum outro lugar.

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12 respostas para Teatro

  1. Tania Mendes disse:

    Oi, Zezé, achei lindo demais! Que história essa , hein? A montagem deve ser muito bonita, adoraria ver. Diga ao Márcio para vir com ela a Brasilia, irei na primeira fila.

  2. Márcio Braz disse:

    Fui assistente de direção e iluminador da montagem. Realmente, “Francisca” de Maria José Silveira foi um dos presentes de minha, ainda, curta mas significativa trajetória nos palcos teatrais (tenho apenas 11 anos de palco). Depois descobri um texto escrito por Sylvia Aranha de Oliveira Ribeiro chamado “Francisca – a utopia da liberdade”, uma novela sobre o mesmo caso. Conheces Maria José?
    Um abraço.

    • Que bacana o iluminador de Francisca por aqui!
      Fico muito contente.
      Mas não conheço esse livro não. É mais antigo ou recente? Fiquei curiosa e vou tentar encontrá-lo.
      Um beijo e muito obrigada pelo comentário.

  3. Ivo Fernandes disse:

    Oi, Maria José!
    Gostaria de encontrar no seu Blog a peça FRANCISCA (monólogo para teatro), mas infelizmente não estou conseguindo. É possível você me ajudar? Obrigado.
    Abraço.
    Ivo Fernandes
    E-mail : ivofmendes@hotmail.com

  4. Ivo Fernandes disse:

    Sou amigo do Márcio Sousa, amazonense como eu e que montou, em 2009, Francisca, uma produção do Tesc, dirigida por Gerson Albano. No início deste ano, Márcio me enviou o texto para que eu o conhecesse e me interessasse em montá-lo aqui no Rio. Mas aí apareceu esse vírus doido e tudo teve que ser adiado. Tenho sim muita vontade de fazer Francisca e gostaria de manter contato com você, Maria José..Se for possível, começamos a nos falar por email.
    Um grande abraço.
    Ivo Fernandes

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