Crônicas

As garantias do mundo

Entre o idoso e a criança existe uma relação curiosa. Uma cumplicidade amorosa, um elo visceral de continuidade.

Os dois são os opostos que se reconhecem e necessitam um do outro. Ainda que, a rigor, a criança não diferencie bem entre o idoso e o apenas adulto.

Para ela, um e outro pertencem a uma mesma categoria – a dos “mais velhos”. A seus olhos, ter 40/ 50 anos não é muito diferente de ter 60 ou mais. É estar entre “os mais velhos” e ser quase um detentor permanente de experiência e razão; algo que lhes parece parte natural da vida adulta. Tdos estão ali para garantir a segurança e alegria do seu minúsculo mundo, o único que ela conhece.

Se a criança chega a pensar em alguma hierarquia, é pela posição na família – primeiro, os pais; depois, os tios e os avós. E por um ou outro detalhe mais visível – uma bengala, certa postura, os cabelos brancos.

Ah! Os cabelos brancos

Uma das recordações que guardo da minha avó é justamente de seus cabelos brancos. Compridos, permanentemente presos em um coque na nuca. Só à noite, sentada de camisola em sua cama, ela os soltava e escovava. Suave, pensativa, longamente. Um momento de descanso, suponho; reminiscências. Até que por fim os prendia no coque firme e se deitava. Quando acordasse de manhã bem cedo para a missa, já estariam arrumados.

Ver esse ritual era o prêmio para a neta que dormia em seu quarto, nas férias. Em geral, privilégio das mocinhas. Mas às vezes também nós, as menores, conseguíamos nos acomodar ao redor de sua cama para vê-la se aprontar para o sono. A camisola de algodão, a oração frente ao oratório. E de vez em quando, o prêmio dos prêmios: tocar na brancura e suavidade da seda pura dos seus cabelos.

Havia outra coisa que se ligava à noite da minha avó, seu ronco. Um ronco sibilado que, em um momento, dava uma paradinha. As primas mocinhas nos diziam que entre essa parada e o recomeço do ronco havia a possibilidade de vovó morrer. Ficávamos sem respirar quando, no meio da noite, escutávamos a paradinha. Era um pequeno momento de pavor, ainda que bastante abstrato. Algo da natureza do suposto barulho de uma janela batendo ao vento, ou do ruído fantasmagórico da passagem de alguma alma penada. Morte e velhice eram tão incompreensíveis e desconhecidos quanto uma alma penada.

O que é fácil explicar.

A não ser quando acontece muito perto, não se fala de morte e doenças com crianças. Queixas, dores, suspiros profundos: a criança passa longe de tudo isso. Nenhum idoso lhe conta que está com pressão alta, que amanhã tem uma consulta médica, que seu joelho está ardendo como se pegasse fogo.

Por que faria isso?

Enquanto for possível, é de praxe salvaguardar as crianças. E com muita razão.

Pois se, para elas, os “mais velhos” existem como garantia da permanência do que elas conhecem, para os idosos, o reverso é verdadeiro: para eles, as crianças são a outra ponta que também lhes garante a continuidade do mundo.

——–

Uma alternativa para a boa vida

Não sei se vocês já ouviram falar de “rizartrose do polegar”.
Tomara que não, pois é do tipo de problema que só se conhece quando você – ou alguém perto – passa a ter: uma inflamação da articulação na base do polegar. O nome vem de riz, arroz em francês, porque a base do polegar começa a juntar uns grãos nesse formato. Essa articulação – batizada de trapezo-metacarpiana – é a que proporciona ao polegar o grande raio de movimentos que, imagino, deve ter sido o que o fez nos diferenciar de nossos ancestrais menos hábeis, os chamados (talvez, injustamente) chimpanzés.
Ainda bem que em nosso milênio, com a evolução nesse sentido já feita e consolidada (salvo as inúmeras exceções!), a importância desse polegar já não parece tão definitiva. Caso contrário, eu receava entrar em franco processo de in-volução. Pois não é que fui arranjar esse problema logo na articulação do polegar direito?
Horrorizada, corri para uma “Oficina da Mão”, indicada pelo ortopedista. Fui com um receio danado de perder minha humanidade (entre outras coisas), e ser proibida de digitar.
Na sala das fisioterapeutas havia uma longa mesa onde dois outros pacientes, com outros problemas, eram atendidos ao mesmo tempo. Do meu lado esquerdo, um pianista colocava “anéis” de suporte para o dedo indicador, na esperança de poder praticar as Bachianas para um concerto já programado. Do lado direito, um cirurgião plástico encomendava um suporte especial para as duas mãos, na esperança de ainda poder consertar narizes e modelar bocas de sabemos quem. Frente a eles, meu polegar pareceu tão irrisório que quase me despedi e voltei pra casa.
Ainda bem que fiquei.
Porque tive duas boas notícias: a rizartrose não interfere nem com meu ser pensante nem com o ato de escrever. E, segundo: o que devo evitar – vejam só a predestinação! – é o movimento de, por exemplo, pegar na vassoura, passar roupa, guardar as compras, lavar louças, carregar panelas de arroz. (Daí, talvez, o tal nome francês.)
Pra quem estava esperando terminar em uma floresta escura, densa e fria, essa ida à fisioterapeuta iluminou o dia. Voltei para casa aliviada e postei essa historinha no meu blog.
Qual não foi minha surpresa – ingênua que sou, – quando comecei a receber uma avalanche de e.meios de mulheres mas, sobretudo, de homens – afinal, a evolução é uma lei ainda não revogada, e os exemplares masculinos da espécie, embora relutantemente, já aprenderam a usar o polegar para manejar panelas. Queriam todos a receita, não do remédio, mas de como provocar essa desculpa perfeita para poderem se refestelar no sofá e ver todos os jogos da Copa, tendo a cerveja colocada atenciosamente ao lado.


Desconhecida leitora e desconhecido leitor
:

Para inaugurar este espaço, uma carta aberta a você.

Não nos conhecemos.

Mas, entre as várias coisas que certamente temos em comum, uma é a de viver em dois mundos. No mundo concreto, real, onde acordamos, comemos, trabalhamos, amamos, temos um lugar para pousar a cabeça. E no mundo imaginário onde pensamos, fantasiamos, projetamos, e re-vivemos de outra maneira o que nos aconteceu, está acontecendo, acontecerá.

Pois nesse mundo imaginário estamos permanentemente re-contando a nós mesmos nossa história, injetando nela nossos desejos, emoções, temores, esperanças.

Outra coisa que temos em comum: o tempo. O passado, o fundamental presente, e o fugaz futuro – que, a rigor, mal existe já que acaba à medida que passamos ao minuto seguinte. Enquanto estamos aqui, agora, nosso presente vai entrando pelo futuro e tudo vai virando passado, história.

É assim que vivemos, apoiando-nos no que passou e nas projeções futuras para enfrentar nosso dia-a-dia com sua cota de bons e maus momentos. Alegrias, indiferença, dissabores. E tudo o mais que faz de nossa vida esse fluxo permanente que ela é.

E desse tempo que passa, desse hoje a nossa volta virando história, é que pretendo falar aqui. Contar pequenas histórias de frases entreouvidas, de episódios vistos ou noticiados pelos jornais. Olhar para o dia lá fora com o recorte da ficção, parte do imaginário, e daí trazer alguma coisa que possa surpreender, intrigar, divertir você.

Por exemplo.

Passei hoje a pé por uma esquina movimentada. Carros à frente, carros atrás, gente por todo lado. De repente, escuto uma voz alta, clara, animada, “Olá, minha princesa!” Olhei para ver de onde vinha a voz completamente atípica nas ruas do centro da cidade, onde tudo o que escutamos é burburinho de transito, barulhos indefinidos, cacofonia de vozes baixas. Raramente uma voz cristalina, e alegre. Sim, era uma voz eu diria até radiante, que acabara de dizer alto para que todos ouvissem, “Olá, minha princesa!”

Quem falava era uma mulher por volta dos 40, magra, cabelo preto, vestida como se veste alguém que vive na rua. A “princesa” a quem ela se dirigia era a dona de um Alfa Romeo que imediatamente corrigiu a distração de estar com o vidro de sua janela aberto e começou a fechá-lo. Mas não tão rápido que não desse para escutar a continuação da voz contente, “Não, não se assuste. Quero te contar uma coisa.”

Juro: dava pra ver que todos os transeuntes, não só a “princesa” atônita antes que o vidro a isolasse para sempre, olharam curiosos querendo saber o que a mulher teria a contar.

Mas pelo sim, pelo não, pelo inusitado da coisa, pela tensão da cidade, pelo medo do outro, ninguém parou.

Nem eu.

Será que ela teria mesmo algo a contar, ou essa animação toda era apenas uma maneira original de abordar alguém? Seria mesmo autêntico o regozijo daquela voz na rua por onde sempre passamos, trancafiados em nós mesmos, esperando agressão e não alegria?

Não parei dessa vez, mas prometo parar da próxima.

Pois é desse tipo de história que acontece a nossa volta – e cujo enredo e significado deixamos pra trás – que desejo lhes contar.

Neste espaço, duas vezes por mês.

PUBLICADO EM “O POPULAR” – Goiânia – 12/05/2010

7 respostas para Crônicas

  1. Gloria Rivers disse:

    Olá, Maria José!
    Tudo bem?
    Adorei sua crônica “Uma alternativa para a boa vida”.
    Meu nome é Gloria, tenho 44 anos, sou artesã. Descobri, faz uma semana, que estou com rizartrose nas duas mãos. Puxa…Fiquei triste e preocupada, como você. Achando também que estava fadada à in-volução ou talvez tivesse que ir morar na floresta escura, fria e densa. Bom, na verdade estou aceitando bem o diagnóstico. Agora vou ter que procurar outra profissão. Enfim…Coisas da vida.
    Estou escrevendo, porque gostaria de perguntar algumas coisas pra você: há quanto tempo você está com rizartrose? Como está sendo a evolução da doença? Como você se adaptou a tudo isso?
    Um beijo e obrigada pela crônica!
    Gloria

    • Oi, Gloria: uma notícia boa. Tenho controlado bem a rizartrose com uma luvinha que uso preventivamente sempre que acho necessário. Com isso, praticamente não tive outras crises. Voltei a fazer tudo que fazia antes. Você mora em São Paulo? O ideal é fazer uma luva com o molde de sua mão.
      Se morar, te passo o endereço do pessoal que me atendeu e foi ótimo. Realmente não foi o fim do mundo. Beijos e melhoras!

      • Gloria Rivers disse:

        Oi, Maria José!
        Que sorte ter te encontrado! Estava precisando conversar com alguém para trocar figurinhas. Sou de São Paulo. Já fiz a minha ortese, mas não tive muita sorte. A primeira não ficou boa e a segunda o polegar ficou tão apertado que o dedo não entra…Então, vou abusar de você mais um pouquinho e pedir o endereço de onde você mandou fazer sua ortese.
        Muito obrigada pela resposta. Você é um anjo!
        Beijos e que sua mão continue sempre boa.

      • Olá, Gloria:
        Nossa! você já fez duas vezes? A minha deu certo logo na primeira. Fiz na “Oficina das Mãos”, na r. Barata Rieiro, 490, cj 18, fone: 3151 2669. Espero que as meninas de lá acertem com você também. Ah, nossas mãozinhas!
        Beijos e boa sorte!

  2. Olá, Gloria:
    Nossa! você já fez duas vezes? A minha deu certo logo na primeira. Fiz na “Oficina das Mãos”, na r. Barata Rieiro, 490, cj 18, fone: 3151 2669. Espero que as meninas de lá acertem com você também. Ah, nossas mãozinhas!
    Beijos e boa sorte!

    • Gloria Rivers disse:

      Oi, Maria José:
      Consegui! Agora estou com a minha luvinha perfeita! Fizemos no mesmo lugar.Você teve mais sorte e ficou boa na primeira. Elas me explicaram que isso acontece. Me dá um conforto saber que está dando certo pra você. Que bom!
      Quero te agradecer por ter compartilhado sua rizartrose de forma tão bem humorada. E muito obrigada pelo endereço.
      Um beijo grande e muita saúde!

      • E também tem outra coisa, Gloria: é preciso um tempinho para acostumar. Às vezes ela é meio chatinha mesmo. Mas, de fato, funciona e evita as crises. No começo, passava o dia com elas. Agora, só uso quando vou digitar durante muito tempo ou quando sinto alguma fisgadinha. Beijos e tudo de bom pra você!

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